terça-feira, 13 de abril de 2010

FELICIDADE4

Quarta parte.

Quando nos sentimos infelizes no mundo em que vivemos, sonhamos com um mundo melhor. No mundo natural, estamos sujeitos a cataclismos, terremotos, maremotos, desmoronamentos, raios, tempestades, inundações, incêndios florestais, fenômenos telúricos que destroem o patrimônio e ceifam a vida das pessoas. No mundo cultural estamos sujeitos a guerras e toda sorte de conflitos, acidentes e infortúnios como fome, miséria, peste. A infelicidade gerada por fatores naturais e culturais é constante no curso da existência dos seres humanos.

O otimismo de Tenzin Gyatso, no que tange à humanidade, conduz à fantasia, a uma realidade que não é a deste mundo. A sua crença na meiguice congênita do ser humano assemelha-se à tese de Jean-Jacques Rousseau sobre a inata bondade do selvagem. Ao equacionar a busca da felicidade em termos marciais (combate ao sofrimento, conhecer bem o inimigo e escolher as armas adequadas, como se estivesse em guerra declarada) Tenzin deixa implícito o pressuposto do seu argumento: belicosidade inerente à arquitetura mental do ser humano, da qual ele próprio não escapou ao assim raciocinar. Os pares de opostos decorrem dessa arquitetura que leva o ser humano a pensar e agir em termos de combate: bem-mal, amor-ódio, amigo-inimigo, quente-frio. Na opinião do venerável tibetano, a ferocidade humana é contingente e a bondade humana permanente. No entanto, o passado e o presente testemunham a constante ferocidade do ser humano, tanto no estágio selvagem como no estágio civilizado.

Fritjof Capra, cientista austríaco que de modo arguto e fascinante traçou o paralelo entre a Física e o misticismo (Tao da Física) diz em outro livro (Sabedoria Incomum) que a impressão de meiguice que o povo indiano lhe causara se modificou ao saber do assassinato de Indira Gandhi e lembrar o de Mahatma Gandhi. Podia acrescentar o clima de ódio e beligerância entre hinduístas e muçulmanos que, após a morte de Gandhi, separaram-se e formaram duas nações distintas que se hostilizam, cada qual com a sua bomba atômica.

Recentemente, a televisão mostrou: batalha campal entre monges budistas na Ásia; lutas corporais nos parlamentos de diferentes países; pancadarias entre policiais e reivindicantes em movimento de rua. Lutas esportivas violentas, do tipo vale-tudo, esportes sangrentos ou de alto risco para a vida e a integridade física, como as touradas e as corridas de automóveis, têm grande audiência e público aficionado. Movidos pela ganância, países se aliam para invadir e pilhar outros, matando, mutilando, ferindo os habitantes. O demônio fica à solta – não aquele da fantasia maliciosamente criada pelos sacerdotes para aterrorizar os fiéis, o senhor do Inferno que habita o centro da Terra, onde o calor é infernal – e sim aquele que habita o interior de cada pessoa, o autêntico e poderoso demônio que é o próprio ser humano.

A ausência de maldade no homem primitivo é lenda. O paraíso terrestre jamais existiu. O homem não foi criado diretamente por deus algum, como bem o demonstra a ciência contemporânea. A espécie humana resultou de uma evolução do gênero animal ao longo de milhões de anos. A bíblia hebraica e os evangelhos cristãos enganaram-se quando, através das genealogias que arrolam, estabeleceram em apenas seis mil anos o surgimento do primeiro casal. O historiador Edward McNall Burns (História da Civilização Ocidental – 1º volume) conta que, em 1654, o reverendo John Lightfoot, Vice-Chanceler da Universidade de Cambridge, depois de acurada pesquisa bíblica descobriu que o primeiro homem foi criado pela Trindade no dia 26 de outubro de 4004 a.C., às 9,00 horas. Talvez, ele comemorasse a data com bolo de aniversário.

Ao contrário do que está escrito na bíblia hebraica, o homem não foi criado à imagem e semelhança de deus. O deus hebreu é que foi concebido à imagem e semelhança do homem hebreu. Ao escrever o Gênesis, no século V a.C., porque o rolo de papiro com o texto original fora queimado no incêndio que destruiu o templo de Jerusalém, como informa Tomas Hobbes (Leviatã), o escritor hebreu se olhou no espelho e viu a imagem do deus hebreu: vaidoso, egocêntrico, exclusivista, negociante, cruel, rancoroso, homicida e genocida. Assim como os outros povos da antiguidade, os hebreus também tinham os seus próprios deuses, porém Moisés os reduziu a um só e lhes outorgou uma série de mandamentos. O povo hebreu resistiu. Moisés e o seu grupo mataram três mil hebreus. Imposto à força pelas armas, o culto monoteísta não passou da monolatria. O povo retornava ao culto politeísta reincidentemente, culminando com o cisma, em 930 a.C., entre hebreus conservadores de um lado (as tribos de Judá e Benjamin que reunidas formaram o reino de Judá) e hebreus liberais de outro (as dez tribos que formaram o reino de Israel). Os dois grupos se odiavam, embora tivessem em comum a origem (hebraica) e o patriarca (Abraão).

Do confronto entre o antigo testamento (bíblia hebraica) e o novo testamento (evangelhos cristãos) verifica-se que o deus hebreu, de nome Jeová, não se confunde com o deus cristão: são divindades distintas e opostas. Jeová é deus de um só povo (hebreu). O deus cristão, que Jesus chamava de Pai Celestial, é deus de todos os povos. Jeová tem características perversas; o Pai Celestial, características bondosas. Jeová promete vida afortunada aqui na Terra ao hebreu que lhe for fiel. Jesus promete bem-aventurança no reino espiritual aos seres humanos segundo o merecimento. Jeová seduziu Abraão prometendo riquezas materiais. Ao tentar fazer o mesmo com Jesus, fracassou. Jesus resistiu à tentação: “afasta-te de mim Satanás”. O Jeová de Abraão e o Satanás de Jesus são o mesmo demônio que habita o interior de cada ser humano. O judaísmo e o cristianismo são patriarcais. A igreja católica atenuou a situação, criando o culto à Maria, mãe de Jesus, que passou a mãe de deus e virgem, como se fosse possível Deus ter pai ou mãe e Maria ser virgem depois de parir sete filhos!
O ser humano, criatura do reino animal, tem todos os atributos dos animais irracionais, inclusive a ferocidade. Tal como os irracionais, o animal racional não é feroz o tempo todo, nem manso o tempo todo. A educação encobre a ferocidade e a coloca na jaula. Ao menor descuido, abre-se a porta da jaula e o demônio escapa. Krishnamurti dizia que devemos ir além do pensamento, da linguagem e do tempo se quisermos resolver os problemas existenciais e eliminar o medo e o desejo. Em outras palavras: devemos assim proceder para dominar o demônio, que além de feroz é inteligente e sagaz. A técnica de controle dificilmente é aplicada, pois, no cotidiano, as pessoas comportam-se de modo letárgico, nem feliz nem infeliz. A felicidade parece não constar objetivamente dos seus propósitos. Nota-se que as pessoas levam uma existência robotizada, padronizada na linguagem, no consumo, nos costumes, sem questionar as informações que lhes entram pelos olhos e ouvidos, sem refletir, sem meditar sobre as idéias e as crenças circulantes.

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