quinta-feira, 8 de abril de 2010

FELICIDADE3

Terceira parte.

A coexistência pacífica e a necessidade de ordem que a garanta dependem da escolha adequada entre os vários modos de vida e os diferentes métodos de solucionar problemas da comunidade. Quando escolhe mal, ou quando não lhe é dado o direito de escolher, o povo sente-se infeliz. Pacificada a escolha no texto da lei fundamental, ainda assim o povo pode ser infelicitado em decorrência da política adotada pelo governante ao tratar dos assuntos econômicos e sociais. A noção de bem comum serve para orientar a atividade governamental. O conteúdo do bem comum varia de povo para povo e de época para época; o que parecia bom a uma geração, pode parecer ruim a outra: a segurança nacional prioritária numa década pode ser secundária na década posterior; o modelo econômico do século XX, manipulador e destruidor da natureza, substituído no século XXI por um modelo ecológico de economia: fundamento holístico, crescimento moderado, menos quantidade, mais qualidade, menos trabalho, mais lazer, tecnologia simplificada, energia limpa, bens renováveis, reflorestamento, agricultura biológica.

Em nível teorético, o bem comum pode ser compreendido na síntese de Augusto Comte: o amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim. Em nível dos princípios, o bem comum compreende a vida, a liberdade, a igualdade, a propriedade e a segurança. No plano dos fatos, o bem comum compreende o patrimônio natural e cultural da humanidade, em geral, e de cada país, em especial, e o correspondente bem-estar usufruído pelo maior número de pessoas. Na extensão do bem comum estão incluídos serviços e obras realizados direta ou indiretamente pelo Estado como, por exemplo, fundar, construir, manter, conservar: escolas, centros de excelência para formação de professores, cientistas e artistas, bibliotecas, museus, teatros, cinemas, ginásios e estádios; hospitais, postos de saúde, clínicas de recuperação e repouso, creches, laboratórios, farmácias; casas, restaurantes, albergues e centros de distribuição de alimentos e vestuário para atender a população carente; redes de água, esgoto, energia, telefonia e computadores; ruas, pontes, viadutos, rodovias, ferrovias e linhas de transporte terrestre, fluvial, marítimo e aéreo para circulação das pessoas, mercadorias e matéria-prima. Inclui-se também no bem comum: a direta exploração de atividade econômica pelo Estado, quando necessária à segurança nacional ou para atender interesse coletivo relevante; a defesa do país, da ordem pública, do meio ambiente, do trabalhador, do produtor, do consumidor, das minorias; crédito à população, à agricultura, à indústria, ao comércio, ao setor privado de serviços; registros públicos; correios, telégrafos, rádio, televisão; previdência social, assistência social.

No seio da família, a felicidade é um bem compartilhado, a exemplo do que acontece em nível nacional: consiste num estado coletivo de contentamento e de segurança. A harmonia e afeição entre cônjuges ou companheiros, entre pais e filhos, a vivência de princípios éticos e religiosos, a satisfação das necessidades básicas de moradia, alimentação, vestuário, educação, saúde, lazer, em nível compatível com a dignidade humana, bem como a permanente fonte de renda que permita suprir tais necessidades, fazem da família uma comunidade feliz.

No mundo ocidental contemporâneo essa felicidade encontra obstáculo no consumismo e no excesso: (a) de horas à frente do aparelho de televisão ou do computador (b) do tempo de permanência diária fora do lar (c) de atividades profissionais, corporais e sociais (d) de preocupação com a sobrevivência ou em manter o padrão econômico e social conquistado. Sobre os laços afetivos, Mark Twain dizia que homem e mulher só sabem o que é amor perfeito depois de 25 anos de casados. Oscar Wilde dizia que a pessoa apaixonada principia por enganar a si própria e depois acaba por enganar aos outros. Esses dois escritores são citados por Howard C. Cutler, psiquiatra estadunidense que no século XX realizou uma série de entrevistas com Tenzin Gyatso, XIV Dalai Lama. O tema era a felicidade. O médico publicou um livro onde expõe e comenta, sob prisma psicanalítico, as respostas daquela autoridade tibetana e budista (A Arte da Felicidade).

No âmbito individual, a felicidade consiste no contentamento desfrutado pela pessoa em relativa segurança. Segundo Tenzin Gyatso, perseguir a felicidade é o propósito da vida; a felicidade é determinada mais pelo estado mental da pessoa do que por fatores externos; o estado mental abrange intelecto e sentimento, razão e coração; a pessoa encontra a felicidade ao atingir o estágio de libertação ou superação do sofrimento. Quando depende do prazer físico exclusivamente, a felicidade é instável: a pessoa é feliz num dia e infeliz no dia seguinte. A felicidade advém da gratificação das necessidades próprias acoplada ao objetivo de proporcionar igual gratificação aos outros, estimar o próximo e suavizar o seu sofrimento. Compaixão, empatia, intimidade, são ingredientes da felicidade que valorizam a vida humana. Na ótica budista, a ignorância, a ganância e o ódio são os venenos da mente, causas primeiras da infelicidade cuja remoção requer treinamento.

Contribuem para a felicidade de cada indivíduo: a posse de um patrimônio econômico, o sucesso no projeto pessoal de vida, a vivência de sua própria concepção de mundo na intimidade e privacidade, a momentânea ausência de sofrimento, o êxito nas atividades culturais, artísticas e esportivas. Pessoas sentem-se felizes em ajudar aos necessitados, servir ao próximo sem qualquer interesse egoístico, como Teresa de Calcutá; encontram felicidade na devoção ao sagrado e às coisas mais simples da natureza, como Francisco de Assis. O prazer que a pessoa desfruta nessas coisas é um atributo da felicidade.

A ausência definitiva do sofrimento é bem-aventurança. O filme Horizonte Perdido, produzido nos EUA na primeira metade do século XX, mostra essa felicidade paradisíaca. A cidade fictícia de Shangrilá, nas montanhas do Himalaia, era esse paraíso de permanente prazer, alegria, harmonia e suavidade. As escrituras sagradas dos cristãos e dos muçulmanos também se referem a esse paraíso de eterna felicidade. No mundo real não há lugar para felicidade plena. A dor e o sofrimento são realidades existenciais: alternam-se momentos de prazer e de dor, de alegria e de tristeza; desavenças quebram a harmonia e a suavidade.

Ao nascer, a pessoa sente dor física quando respira pela primeira vez e dor psíquica por separar-se da mãe. A partir do nascimento, as dores físicas e psíquicas não cessam pela vida afora: fraturas, ferimentos, doenças; ofensas, desilusões, perdas de entes queridos e de bens. A capacidade de suportar a dor e o sofrimento varia de pessoa para pessoa. Poucas pessoas dedicam-se a treinar a mente e o coração para evitar ou suavizar o sofrimento; a alquimia mental e emocional é domínio de poucos; grande parcela da humanidade está no limbo: almas e corpos minados pela fome e pelo sofrimento não se dispõem a voar. Enternece o intrigante sorriso meigo e triste de gente cujo cotidiano é de padecimentos. Enigmático e comovente sorriso que brota da alma personalizada.

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