domingo, 18 de abril de 2010

FELICIDADE6

Sexta parte.

A felicidade experimentada pela comunidade ou pelo indivíduo isolado é um estado de espírito de duração variável no tempo, despertado por bens materiais e imateriais conjugados a princípios éticos. Com acerto e sensibilidade poética, diz a canção popular: “A felicidade é como a pluma / que o vento vai levando pelo ar / voa tão leve / mas tem a vida breve / precisa que haja vento sem cessar” (Orfeu do Carnaval). A comunidade e o indivíduo às vezes não a percebem no momento em que a vivenciam. Disse-o bem, em uma das suas canções, o compositor brasileiro Ataulfo Alves, ao falar da sua infância e da professora que lhe ensinou o b-a-bá: “eu era feliz e não sabia”.

Comparando a situação do presente com a do passado o indivíduo constata se foi feliz ou infeliz. O mesmo quando compara a sua situação atual com a de outros indivíduos, em seu país ou no estrangeiro. Em reportagem de emissora de televisão um soldado brasileiro, ao testemunhar a miséria do povo haitiano se declarou feliz com a sua casa e modesta condição social no Brasil (2010). A comparação o ajudou a sentir-se feliz com o que tem.

Em roda de samba, em desfile de carnaval, em torno da mesa com comidas e bebidas, pessoas da mesma ou de diferentes camadas sociais cantam, dançam, conversam, riem, se abraçam, apertam as mãos, mostram-se alegres e felizes. O desemprego, o abandono, a desilusão, a tragédia, deixam as pessoas tristes e infelizes. A alegria é sintoma de felicidade; a tristeza, de infelicidade. Há ocasiões em que as pessoas não se mostram felizes nem infelizes: à espera do resultado de um exame, mostram-se apreensivas; em cerimônias cívicas, mostram-se orgulhosas; meditando no templo, compenetradas; diante da televisão, impassíveis.

Perseguir a felicidade é o propósito da vida humana, afirma Tenzin Gyatso, atual Dalai Lama. Propósito aí significa objetivo visado, supõe vontade, decisão e intenção de alcançá-lo, o que implica querer, sentir e pensar. Com tais predicados conhecemos apenas dois sujeitos: Deus e o homem.

A presunção de que Deus tenha tais predicados assenta-se no cosmos e na organização física e mental do ser humano. Deus pensa, sente, quer e age, tal qual acontece com os seres humanos. O homem organiza e governa o mundo cultural; presume, então, que Deus organiza e governa o mundo material e espiritual. Da observação e do estudo dos fenômenos naturais e de si próprio, o homem intui a presença de Deus na origem e na evolução do universo, estabelece correspondência entre o poder humano e o poder divino. À hierarquia na cidade terrena faz corresponder a hierarquia na cidade celeste. Deus é o rei, governante supremo e absoluto. Nas respectivas graduações servem-no os serafins, querubins, tronos, potestades, principados, arcanjos, anjos e demais habitantes da cidade celeste.

A afirmativa de que só Deus tem poder não encontra amparo na lógica e tampouco na experiência histórica. Revela isto sim, o intuito de negar o poder do chefe de Estado, do chefe de família, do dono do capital, da informação, do conhecimento e da tecnologia. Poder é aptidão do sujeito de submeter à sua vontade, aos seus interesses e aos seus propósitos, a vontade, os interesses e a conduta dos outros. A capacidade de persuasão caracteriza o poder, quer pelo diálogo, quer pela força potencial ou efetiva. A doutrina anarquista nega o poder político dos homens. Essa negativa serve também à doutrina religiosa da subordinação do Estado à Igreja. Intitulando-se delegada do poder de Deus e sua representante na Terra, a Igreja outorga a si mesma o papel de guardiã das consciências e o direito de governar o mundo.

A afirmativa de que Deus é fiel não resiste à crítica. O propósito dessa afirmação é o de fortalecer a fé dos crentes nas promessas atribuídas a Deus. Essas promessas, entretanto, foram inventadas pelos escritores dos textos religiosos e repetidas ad nauseam por rabinos, padres e pastores. O homem é que deve ser fiel a Deus e à palavra empenhada. Deus não é fiel nem infiel. Poderoso, não necessita do ser humano para coisa alguma. Deus nada promete e nenhum contrato celebra com os humanos ou qualquer outro ser do universo. Deus está acima de todas essas coisas e a tudo governa mediante leis inflexíveis. Há pessoas presunçosas que se acham o centro das atenções de Deus e quando situadas na sociedade de modo que facilita a aceitação do seu discurso, disto se aproveitam e passam a sua presunção ao público. Por sua vez, o público sente-se feliz, seguro e gratificado ao saber que é alvo da direta atenção e dos cuidados de Deus. Doce ilusão!

Os seres racionais opinam e especulam com os recursos da inteligência, com os dados da experiência, com as leis da natureza e com as crenças transmitidas de geração a geração. No plano dos fatos, reina incerteza se Deus tinha ou não tinha algum propósito ao criar o mundo; se houve um começo e se haverá um fim. A explosão referida pela astrofísica, imitada pelos cientistas em março de 2010, num mega reator nuclear, teria dado nascimento ao nosso universo. Outros universos podem estar nascendo e morrendo, como indicam os buracos negros. Não está descartada a tese segundo a qual o universo se expande até um limite, depois se contrai até um átomo embrionário que ao explodir dá origem a outro universo. A expansão e contração corresponderiam à grande respiração de Brahma referida no hinduísmo, como sugere o físico austríaco Fritjof Capra (Tao da Física).

Quanto à natureza, não há propósito algum. Propósito implica incidência da vontade. Destituída de vontade, a natureza apenas tem função governada pela inteligência cósmica. A função da vida é gerar universos e movimentá-los. A função do universo é existir e se movimentar no tempo e no espaço segundo as leis da natureza. A função da vida humana é cumprir o ciclo natural de cada indivíduo: geração, nascimento, existência e morte. No mundo da cultura ocorre o mesmo: Estado, sociedade, família, igreja, empresa, sindicato, associação civil, carecem de vontade própria e têm apenas função governada pela inteligência humana.

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