quinta-feira, 22 de abril de 2010

FELICIDADE7

Sétima parte.

Somente a inteligência humana imagina e estabelece propósito para as coisas do mundo inspirada pelo sentimento e movida pela vontade. A ação humana é teleológica: o homem é o artífice do seu destino, fonte de todos os valores, se propõe fins e busca os meios de realizá-los. A felicidade, estado de espírito ocasional resultante dos pensamentos, dos sentimentos e da conduta do ser humano, pode ser um desses fins, mas não é a meta imediata do homem. A meta imediata é egoística: manter e conservar a própria vida; satisfazer as suas necessidades e os seus interesses; usufruir dos produtos da natureza e da civilização; tornar efetivas suas potencialidades físicas, morais e intelectuais. O meio de alcançar essa meta é o trabalho manual, técnico e intelectual. A meta mediata do homem é altruística: solidarizar-se, ajudar o próximo a enfrentar o sofrimento e a dor, juntar-se aos demais membros da comunidade a fim de realizar o bem comum. A liberdade e o espírito de fraternidade permitem a consecução dessas metas. A felicidade individual e coletiva é conseqüência.

Tudo o que gera bem-estar e prazer contribui para a felicidade do ser humano. Desde que o corpo esteja bem nutrido, sadio, com suas apetências atendidas, o ser humano sente-se feliz. Mudanças ocorrem mais lentas no mundo da natureza: bilhões de anos foram necessários para que nosso planeta reunisse as condições propícias ao surgimento da vida vegetal e animal. No mundo da cultura, as mudanças são mais velozes: passamos do veículo de tração animal à nave espacial no curto período de duzentos anos; em menos tempo, da máquina de escrever mecânica à eletrônica; em tempo mais curto ainda da roupa de banho feminina ao biquíni, do espartilho, saias compridas e anáguas, à mini-saia. As mudanças na técnica e na moda trouxeram mais conforto e contribuíram para as pessoas se sentirem felizes. A injustiça, a maldade, a ignorância, a pobreza, a fome, a doença, o ostracismo, a guerra, causam dor e sofrimento. Com a paz, a justiça, a bondade, a beleza, o saber, a riqueza, a fama, as pessoas se regozijam. Dentro dessa interminável dialética entre opostos, não há lugar para um bem-estar permanente e seguro: a felicidade é descontínua e leve como a pluma ao vento.

Fugaz, a felicidade exige esforço humano no sentido de torná-la o mais duradoura possível. Reduzir os fatores naturais e culturais da dependência faz parte desse esforço. Diz a lenda, que Demóstenes fez de um barril a sua casa. Indagado pelo rei ateniense se precisava de alguma coisa, respondeu: preciso que o senhor não me tire o que não me pode dar. O soberano postara-se entre o sol e o filósofo, fazendo-lhe sombra. Entretanto, a experiência ensina que é impossível bastar-se a si mesmo: alguém fabricou o barril do Demóstenes; a madeira do barril veio de alguma árvore cortada e preparada por outras pessoas. Da agulha de osso ao telefone celular, da roda ao computador e à nave espacial, do milho ao manjar, do chá ao coquetel de drogas, da sandália ao chapéu, da cabana ao palácio, quase tudo que serve ao indivíduo e à sociedade é produzido por terceiros da sua ou de outra nação. Reduzir a dependência em relação a essas coisas é reduzir as chances do sofrimento. A felicidade fica mais próxima. A fórmula parece correta: + ser – ter = + feliz.

Considerando a impossibilidade de eliminar o sofrimento sem que se tenha de aniquilar a própria existência humana, a busca da felicidade exige método adequado: identificar e remover as causas do sofrimento na medida do possível; buscar o prazer e evitar a dor; dedicar-se ao próximo e à comunidade de modo altruístico. A medicina investiga as causas da dor física e como eliminá-las. Na esfera psíquica, o ombro amigo alivia a dor moral. A psicanálise, o tratamento neurológico, o antidepressivo, ajudam o bem-estar psíquico. Remover de modo definitivo as causas do sofrimento moral, só na comunidade paradisíaca de Shangrilá.

O ser humano é agente e paciente do sofrimento. Além de se ferirem mutuamente, as pessoas são vítimas de outros fatores externos, como armadilhas, ataques de animais irracionais, fenômenos telúricos, acidentes naturais e artificiais. Da vida em sociedade provêm benefícios e malefícios. O indivíduo nasce, vive e morre no meio social; nele se educa e realiza suas potencialidades. Reduzir a dependência e aumentar a autonomia individual mediante moderação nos hábitos pode abrir caminho à felicidade. Quanto menor a necessidade a suprir, maior será a autonomia do indivíduo e menores as chances de insatisfação. O ser humano é o ponto de partida e de chegada. O conhecimento de si mesmo possibilita o autodomínio e felicidade mais duradoura.

A previsão dos efeitos do pensamento e da conduta pode evitar o sofrimento próprio e alheio. Quanto melhor nos conhecermos, melhor planejaremos as nossas ações, selecionaremos os nossos pensamentos e orientaremos a nossa vontade. Dependendo do que pensarmos, sentirmos, querermos e de como agimos, coisas boas e coisas ruins acontecerão em nossas vidas. A esse destino, os místicos denominam carma. Entende-se por carma o mecanismo cósmico de compensação, como se fora uma contabilidade espiritual a registrar os créditos e débitos da nossa conduta e a calcular o saldo. Esse mecanismo é visto também como lei de causa e efeito: colherás o que plantares; se plantares o bem, colherás o bem; se plantares o mal, colherás o mal; tu és o artífice do teu destino. Esse mecanismo distribui justiça de modo inflexível em nível individual e em nível coletivo, tanto para premiar como para castigar. O seu funcionamento desconhece misericórdia e corrupção. As agressões feitas pelos homens à natureza são retribuídas com mudanças climáticas, maremotos, terremotos, tempestades, perda dos mananciais e da fertilidade do solo. Nações sofrem os efeitos fastos e nefastos das suas próprias escolhas e das decisões dos seus governantes: progresso e atraso, ordem e desordem, alegria e tristeza, prazer e dor.

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