domingo, 30 de maio de 2021

DIREITO APLICADO - XII

Dos juízes, o povo espera sentenças justas. Reputa-se justa a sentença judicial [1] prolatada dentro dos parâmetros do devido processo jurídico, portanto, respeitadas as garantias do contraditório, da ampla defesa, do juiz natural, do igual tratamento das partes [2] sintonizada com os fatos provados, o direito objetivo e os valores vigentes na sociedade [3] pautada pela proporcionalidade e pela razoabilidade [4] quando (i) distribui aos litigantes os bens que realmente lhes pertencem, reconhecendo-lhes direitos e deveres (ii) aplica moderadamente as sanções cabíveis. Embora de acatamento obrigatório, as decisões judiciais são analisadas e questionadas: [1] internamente: pelas partes, no bojo do processo, mediante recursos previstos em lei [2] externamente: (i) pela opinião pública como crítica social (ii) nas faculdades de direito, ocasionalmente, como parte do aprendizado. 
Comum aos humanos, o senso de justiça não se manifesta de modo igual: agudo em uns, grave em outros; racional em uns, emocional em outros. Os critérios sociais de justiça variam segundo crenças, costumes, temperamento e visão de mundo de cada povo. Plagiando Pascal: justo aquém da fronteira, injusto além da fronteira. A questão da justiça ou injustiça das decisões judiciais é deontológica enquanto o processo judicial situa-se no plano ontológico onde primam objetividade e racionalidade. Inobstante a razão ser atributo da espécie humana, das suas operações (apreensão, juízo, raciocínio) resultam diferentes ideias, proposições e argumentos, ainda quando o objeto do conhecimento vulgar ou científico é o mesmo para todos.   
A jurisdição seria um pandemônio se a solução dos casos dependesse exclusivamente do subjetivismo das pessoas. Daí, a imperiosa necessidade de prevalecer a lei vigente no estado (norma agendi) e que a decisão judicial esteja nela amparada. A compreensão dessa necessidade pelos romanos despertou-lhes a consciência jurídica e a noção de uma disciplina autônoma: o direito como (i) conjunto de normas de obrigatória e geral obediência (ii) ciência instituída pelo estudo lógico e sistemático das normas e respectivas aplicações. Na idade clássica, essa compreensão foi facilitada pelo espírito mais prático e menos contemplativo dos romanos comparado com o espírito mais contemplativo e menos prático dos atenienses. A ordem jurídica brasileira não admite a construção do direito pelo juiz a cada caso concreto. O juiz está obrigado a aplicar o direito contido na lei vigente. Eventual lacuna será preenchida por analogia, pelos costumes ou pelos princípios gerais que informam a ordem jurídica em vigor. 
No estado democrático, presume-se legítima a ordem jurídica posta pelos representantes do povo. Na assembleia popular, o grupo que se mostrar mais vigoroso, majoritário ou não, terá seus interesses encampados pela legislação. Se, na sua execução, a lei se revelar injusta, cabe (i) ao aplicador, encontrar fórmula que amenize os seus efeitos (ii) ao legislador, revogá-la. A honesta sintonia da sentença judicial com a prova, com o objeto da demanda e com o direito, indica decisão justa. Essa desejável sintonia nem sempre acontece no piso, no mezanino e/ou na abóbada do edifício judiciário. A parte vencedora qualifica de justa a sentença, enquanto a parte vencida qualifica de injusta. Em grau de recurso, o tribunal pode adotar o ponto de vista do vencido e modificar a sentença. Então, o que era justo em primeiro grau de jurisdição torna-se injusto no segundo (tribunal ordinário). Se houver outro recurso, o que era injusto no segundo grau de jurisdição pode ser considerado justo no terceiro (tribunal especial). Se houver derradeiro recurso, o que era justo no terceiro pode ser considerado injusto no quarto grau de jurisdição (tribunal supremo). 
Medir justiça nas decisões judiciais é tarefa inócua, pois, não se trata de coisa objetivamente mensurável. Como valor moral, justiça tem domicílios: [I] Humano: (i) institucional, o justo varia segundo a interpretação e a aplicação dadas à lei e ao caso concreto pela magistratura (ii) sentimental, o justo revela-se no coração das pessoas (iii) ideal, o justo é apreendido pela inteligência individual e pelo entendimento coletivo. [II] Espiritual: justiça cármica, mecanismo inflexível, neutro à compaixão e à misericórdia, ações boas premiadas e ações más castigadas. [III] Celestial: justiça divina, a conduta terrena é avaliada, mas, por misericórdia, compaixão e amor ante as fraquezas humanas, o castigo deixa de ser aplicado ao pecador. 
O anseio por justiça é permanente no espírito humano. Quantas vezes, em episódios dolorosos, as pessoas clamam por justiça mais do que por compensação em dinheiro. Manifestam o mais primitivo desejo humano inflamado por sentimento de vingança: a morte do outro. A cena de pessoas reunidas numa sala testemunhando a fritura do cérebro de uma pessoa viva na cadeira elétrica é vista com naturalidade. Quando o criminoso é preso (às vezes torturado) o público vibra com o triunfo da justiça. O povo romano também vibrava quando os cristãos, réus da justiça pagã, vivos na arena, serviam de comida aos leões. Justiça, então, significava felicidade socializada para quem fosse infeliz individualmente. Mata-se o vegetal e o animal irracional para fins humanos. Mata-se o animal racional  para roubar, herdar, lavar a honra ou se defender. Mata-se por adultério e bruxaria. Mata-se por religião e ideologia. Mata-se por prazer, ciúme, inveja, cobiça, vingança, raiva, ódio. Mata-se o criminoso, o inimigo, o adversário, o desafeto, o traidor. Talvez, no próximo milênio, refinada moralmente e evoluída espiritualmente, a espécie humana consiga dominar esse instinto tanatófilo. 


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