domingo, 23 de maio de 2021

DIREITO APLICADO - X

Em nível individual, justiça consiste no bem e no mal, no prazer e na dor, vivenciados por uma pessoa como efeitos dos seus pensamentos e sentimentos, das suas escolhas, ações e omissões. No hinduísmo, essa justiça denomina-se karma. Em nível coletivo, justiça consiste na equitativa distribuição dos bens e serviços na sociedade. Na política, recebeu o nome de justiça social. Caracteriza o estado do bem-estar social que resultou da evolução política provocada pela industrialização na idade moderna e pela progressiva organização e atuação da classe operária. À iniciativa privada cabe a exploração direta da atividade econômica, porém, regulada, fiscalizada, incentivada e planejada pelo estado. A ação direta e positiva do estado dirige-se à população quanto à saúde, educação, moradia, transporte, trabalho, lazer, previdência social e assistência aos necessitados. 
Os governos Thatcher (Inglaterra, 1979-1990) e Reagan (EUA, 1981-1989) reagiram a essa evolução e inauguraram política neoliberal, influindo nos rumos dos países satélites e do mercado mundial. Tal involução acoplada à dissolução da União Soviética reavivou o fascismo e o nazismo na Europa e na América. Desse modelo capitalista resultaram efeitos disfuncionais mais incisivos nos países em desenvolvimento: elevação das taxas dos juros, da inflação e do desemprego, reduções dos salários e do poder aquisitivo da massa popular, máxima concentração da riqueza em mínima parcela da sociedade, bruscas oscilações das bolsas de valores, crise financeira do estado, povo questionando a legitimidade do governo e pleiteando mudanças na política e na economia.  
Em nível institucional, dá-se o nome de justiça ao sistema de segurança composto de órgãos estatais que funcionam para tornar efetiva e respeitada a ordem jurídica: delegacias de polícia, estabelecimentos prisionais, institutos de criminalística, quartéis, ministério público, juizados, tribunais. Embora juízes e tribunais integrem o sistema de segurança do estado, não lhes compete, ante o princípio da separação dos poderes, planejar ou comandar operações de campo, ou delas participar de algum modo, no combate à criminalidade. Essas tarefas competem exclusivamente à polícia civil e militar e ao ministério público. Ao Poder Judiciário compete o controle das atividades dos investigadores e acusadores oficiais, a fim de coibir excessos e garantir a eficácia dos direitos fundamentais da pessoa humana. 
A prestação da tutela jurisdicional por juiz ou tribunal depende da provocação de alguém, na forma da lei. Nemo judex sine actore = nenhum juízo sem autor. A confusão de juiz e autor na mesma pessoa e no mesmo processo, quer na ação civil, quer na ação penal, contraria o citado princípio. A função judicante não se mistura com a função de acusar, investigar, perseguir, prender, torturar e matar. Por confundir essas coisas, juiz federal da circunscrição do Estado do Paraná tornou-se suspeito nas ações criminais oriundas da operação denominada “lava-jato”. Em consequência, processos por ele presididos foram anulados pelo Supremo Tribunal Federal (STF). 
No Caso Lula, além da suspeição do juiz, também havia incompetência do foro de Curitiba/PR, como reconheceu o STF ao indicar o foro de Brasília como o competente. O foro de São Paulo (competente no rigor da lei) recebeu apenas 2 votos, o de Curitiba recebeu 3 e o de Brasília 6. Alguma carta na manga? O ministro relator apressara-se em apresentar a questão da incompetência a fim de impedir o julgamento da suspeição do juiz. Tentativa frustrada. Outrora, atribuía-se chicana somente aos advogados. Hoje, operações do tipo “mensalão” e “lava-jato” mostraram que (i) no piso, mezanino e abóbada do edifício da jurisdição federal atuam chicaneiros do ministério público e da magistratura (ii) o fuxico de outrora não era só maledicência (iii) havia brasa sob as cinzas (iv) demandas são examinadas e julgadas conforme os nomes das partes: para uns, flexibilidade, blindagem, gaveta; para outros, a lei (v) malícia e sofisma frequentam a interpretação judicial. 
No interior do Estado do Paraná, em 1972, certo réu, condenado pelo juiz substituto da Comarca de Foz do Iguaçu, fugiu para a Comarca de Cascavel. O juiz, querendo ver a sua decisão acatada e cumprida, reuniu-se com a polícia e saiu em perseguição. O episódio repercutiu no Tribunal de Justiça. Por exercer função estranha à sua atividade judicante, o juiz substituto, ainda em período de experiência e avaliação, portanto, sem garantia de vitaliciedade, foi exonerado.
Diligências de caça ao criminoso, coleta de provas, estratégias, enquadramento legal dos indiciados e acusados, tudo isto compete à polícia e ao ministério público. Ao juiz não cabem essas tarefas e sim zelar por sua independência e imparcialidade, manter equidistância da acusação e da defesa. Mesmo topograficamente, o autor da ação penal não devia sentar-se ao lado do juiz nas audiências. 
Designado para aquela comarca da tríplice fronteira (Brasil, Paraguai, Argentina), eu convidei o delegado federal e o comandante do batalhão do exército para, em datas diferentes, comparecerem ao meu gabinete. Objetivo: serenar os ânimos e desanuviar o ambiente que fora tumultuado por aquele juiz. As entrevistas surtiram efeitos positivos.
De acordo com a declaração universal dos direitos humanos, toda pessoa tem direito a julgamento justo por juiz imparcial. O acesso à justiça orgânica estatal inclui o direito da pessoa aos meios necessários para dela se valer. O direito à jurisdição permite à pessoa, ainda que indiciada em inquérito policial ou ré em processo criminal, pedir segurança ao tribunal. “Todo homem tem direito (i) à vida, à liberdade e à segurança pessoal (ii) a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei”. 


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