sexta-feira, 26 de março de 2021

PODER - VII

Na maioria das nações contemporâneas, as leis do estado se sobrepõem às normas das demais instituições (família, igreja, maçonaria, universidade, banco, corporação privada, sindicato, associação civil, corporação militar). Tais centros de poder no interior da nação produzem normas jurídicas de âmbito restrito cuja positividade alcança maior grau quando sancionadas pelo estado. Há inclusão, por exemplo, de dogmas religiosos no ordenamento jurídico do estado sobre casamento, divórcio, aborto, homossexualismo. Nos estados muçulmanos, os dogmas da religião pairam acima das leis estatais e condicionam as ações dos governantes e governados.  
A cada sistema concreto de poder corresponde um direito. Os diversos centros de poder no interior da sociedade segregam regras técnicas do saber fazer (cultivo do solo, plantio, tratamento medicinal, cirurgia, fabricação de coisas, edificação, pilotagem) e também normas de conduta civil não expressas nas leis do estado e que prevalecem na comunicação informal e costumeira (doação, troca, pacto, serviço, código de ética). Ante essa pluralidade de centros de poder impõe-se a coordenação e a hierarquização das normas jurídicas. Como o estado é o centro de poder de maior importância nacional, o seu direito vem na cúpula da hierarquia, acima das ordens jurídicas fragmentárias (doméstica, religiosa, maçônica, universitária, empresarial, sindical, bancária, militar).
A constituição do estado, sob o ângulo material, embora tenha força jurídica, independe de formalização escrita. O exemplo mais citado é o da Inglaterra, que não tem constituição escrita advinda de uma assembleia constituinte. A sua ordem constitucional é consuetudinária, abonada pela jurisprudência e acrescida de algumas leis escritas como, por exemplo, a magna carta (1215), a petição de direito (1628), a lei de habeas corpus (1679), a declaração de direitos (1689), o ato de estabelecimento (1701). Portanto, o que existe naquele país é um sistema constitucional formado pelos costumes, por princípios éticos e religiosos, por decisões judiciais, por esparsas leis escritas, segundo as motivações desse povo na concretude das suas vicissitudes históricas. Depois de examinar o sistema inglês e compará-lo com o modelo francês de constituição jurídica, formal, escrita, vigente na sua época (1878), Boutmy diz: “Temos, sem dúvida, necessidade de algum esforço para reconhecer uma constituição na obra desencontrada cujas fontes acabamos de analisar. Nada, com efeito, se parece menos com os precipitados rapidamente formados, com as cristalizações brilhantes e regulares a que estamos habituados encontrar com semelhante nome. Eu compararia, antes, o modo como se formou a constituição inglesa, a um depósito lento e indefinido no fundo de um licor pouco transparente. Não deixa, por isso, de ter o seu valor – valor experimentado – e seu gênio próprio”.  
A Constituição jurídica, formal, escrita, oriunda do exercício do poder constituinte, plasma a ordem política do estado, equaciona o binômio autoridade + liberdade, recebe normas consuetudinárias e normas escritas de direito público e de direito privado vigentes na sociedade compatíveis com a nova organização. Em geral, as normas recepcionadas são os códigos civil, penal, comercial, laboral, processual e leis esparsas. O advento desse modelo ocorreu nos EUA em 1787, quando fundada a união dos estados americanos e registrada em um documento escrito contendo 7 artigos subdivididos em seções e itens. [Em extensão, os 7 “artigos” do modelo estadunidense correspondem a “capítulos” no modelo brasileiro]. Nesse documento escrito denominado Constituição dos Estados Unidos da América foi traçada a ordem fundamental daquele estado: I - princípios liberal, democrático, republicano e federativo II - poder político compartilhado por três órgãos distintos, independentes e harmônicos entre si (separação dos poderes constituídos) III - distribuição das competências entre eles IV - hierarquia das leis V - formalidades para elaboração de emendas VI - modos de investidura nas funções públicas VII - compromissos da União perante os estados federados VIII - relações entre os estados IX - respeito para com (i) as dívidas contraídas (ii) os compromissos assumidos ao tempo da confederação. Organizou-se, pois, indissolúvel federação de estados. Quando estados do Sul tentaram dissolvê-la por discordarem da abolição da escravatura, estados do Norte reagiram. Eclodiu a guerra civil (1861-1865). A vitória do Norte assegurou a vigência da Constituição dos EUA até os dias atuais com algumas emendas, principalmente, as 10 primeiras sobre os direitos fundamentais. 
Loewenstein cita os seguintes antecedentes da constituição escrita americana: a constituição escrita do príncipe Botoku (Japão, 604 d.C.), a Regeringsfom (Suécia, 1634) e o Instrumento de Governo de Cromwell (Inglaterra, 1654). Refratários a uma lei fundamental escrita, os ingleses rejeitaram a lei e a república de Cromwell. Apesar desses antecedentes, o marco histórico e conceitual da constituição jurídica escrita situa-se no século XVIII. Em decorrência das revoluções americana e francesa, a teoria e a prática do direito constitucional espraiam-se por quase todos os países num universalismo sem precedentes. Das nações que se libertaram do domínio estrangeiro, desde a revolução francesa, nas sucessivas ondas de nacionalismo que foram inundando o mundo, nenhuma deixou de se dar uma constituição escrita. “A soberania popular e a constituição escrita converteram-se, prática e ideologicamente, em conceitos sinônimos”. 
Destarte, a noção geral e cultural de constituição particulariza-se para significar a constituição jurídica escrita do estado moderno, porém, longe de ser uma simples “folha de papel” como a ela, ironicamente, se referiu Lassalle. O papel é o suporte material do que nele se escreve ou desenha. Sobre a folha de papel imprime-se uma linguagem escrita através da qual se comunicam ideias, sentimentos, vontades, projetos, programas. Essa mensagem racional, emocional e volitiva tem um conteúdo fático e axiológico; a sua linguagem contém juízos de realidade e juízos de valor; refere-se a um concreto modo de vida: (i) ontologicamente, a uma comunidade de pessoas em interação no âmbito de um território sob um tipo de governo (ii) deontologicamente, às normas dessa interação e organização (iii) axiologicamente, aos valores vigentes na comunidade e selecionados pelo detentor do poder constituinte. A obediência aos princípios e normas constitucionais é necessária e coercível.    
Miranda, Jorge. Textos Históricos do Direito Constitucional. Imprensa Nacional. Lisboa. 1980, p. 13/28.  
Boutmy, E. Estudos de Direito Constitucional. Rio. Francisco Alves. 1895, p. 46/47.
Loewenstein, Karl. Teoria de la Constitucion. Barcelona. Ariel. 1979, p. 158/160.
Lassalle, Ferdinand. Que é uma Constituição? Porto Alegre. Villa Martha. 1980, p. 21/34.


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