quinta-feira, 11 de março de 2021

PODER - II

Desde a pré-história, os humanos sentem necessidade de uma vida coletiva organizada. Muito cedo, aprenderam a dividir tarefas entre adultos de ambos os sexos para o bem do grupo. Esse aprendizado pressupõe a linguagem. O senso de ordem lhes é inato, reflexo da organização interna do corpo humano. Ainda que a dimensão material do universo seja caótica e a ordem seja um enclave nesse caos, o sistema planetário impressiona os humanos a tal ponto que eles se veem tentados a explicar o mundo da cultura como extensão das leis que determinam o mundo da natureza. Foi esse processo mental que levou o físico Ernest Rutherford a descrever o invisível átomo como um sistema solar microscópico: núcleo em torno do qual giram os elétrons (1911).

A estrutura constitucional da tribo, da cidade, do reino, foi sendo tecida paulatinamente no curso de milhão de anos mediante regras consuetudinárias, usos, costumes, crenças, tradições, valores materiais, morais, místicos e religiosos, à medida que fossem surgindo as necessidades, as utilidades e os interesses e se desenvolvessem as habilidades humanas. Às vezes, surgiam legisladores como Hamurabi, rei da Suméria (Babilônia, Mesopotâmia), Licurgo na Esparta, Sólon em Atenas, com o poder e o propósito de dar nova configuração à sociedade e ao estado, cristalizando-a na pedra, no papiro ou no pergaminho, denotando a importância da linguagem escrita ao lado da comunicação oral.

Inventada a prensa móvel por Gutemberg (1439), o abade Sieyes, na França do século das luzes (1701-1800), lança em livro a doutrina do poder constituinte na política. Em oposição à monarquia absoluta e aos privilégios de casta, o revolucionário abade afirma que o terceiro estado (povo) sustenta o primeiro e o segundo estados (realeza + nobreza secular e eclesiástica); portanto, a soberania, poder supremo na esfera estatal, cabe ao povo e não ao monarca. Aos governantes cabe o poder constituído (limitado); ao povo cabe o poder constituinte (soberano). 

Após as revoluções francesa e americana daquele século, a estrutura normativa do estado moderno passa a ser registrada em um documento escrito denominado “Constituição” elaborado por representantes do povo no exercício do poder constituinte. O constitucionalismo, então, insere-se na cultura dos povos da Europa, América e demais continentes, integrando-se à civilização moderna.  

Da experiência política dos povos modernos constata-se que a sede do poder constituinte varia no tempo e no espaço: pode ser pessoa física (rei, general, líder civil = poder monocrático), grupo de pessoas (elite civil/militar/religiosa = poder aristocrático) ou massa popular (burgueses + campônios = poder democrático). O titular do poder constituinte também o é da soberania; ao legislar, ele não está subordinado a poder e a direito que lhe seja anterior ou superior; faz prevalecer ideia, filosofia, ideologia, crença, projeto (político, econômico, social) que motivaram a ação constituinte. Os condicionamentos ético, psicológico, sociológico, ideológico e filosófico da ação constituinte advêm não só da cultura nacional do detentor do poder constituinte como também da civilização na qual a nação está integrada.

No seu nascedouro, a ação constituinte dos revolucionários franceses de 1789 teve por escopo: (i) transferir a sede da soberania para a nação (ii) limitar o poder do governo (iii) extinguir os privilégios da nobreza (iv) instituir um regime de igualdade jurídica (v) atribuir competência legislativa ao povo e seus representantes a fim de que a produção do direito positivo espelhasse a vontade nacional (vi) reconhecer à pessoa natural direitos individuais inalienáveis e impostergáveis a fim de protege-la contra o arbítrio da autoridade estatal (vii) substituir a economia feudal pela economia capitalista. 

Da evolução histórica, verifica-se que a ação constituinte: (i) altera total ou parcialmente a realidade social pré-existente (ii) cria um novo estado ou modifica o existente (iii) propõe fins e indica os meios para realiza-los. A ação constituinte se desenvolve sob pressão da carga emocional e do esforço racional, fatores subjetiva e objetivamente influentes. Apesar do caráter prospectivo da ação constituinte, o desapego ao presente e ao passado não é total. O misticismo, por exemplo, é um dos fatores influentes, embora paradoxal, pois conduz (i) de um lado, à verdade ante a superioridade da sua fonte de inspiração e revelação (ii) e de outro, à mistificação da realidade diante da necessária interação dos humanos com a existência histórica e cultural. Sobre esse ponto, diz Mannheim:“E mesmo que se conceda que a experiência mística é o único meio adequado de revelar ao homem a sua natureza final, cumpre admitir que o elemento inefável que constitui o objeto dos místicos necessariamente deve ter uma relação com a realidade social e histórica”. 

Coulanges, Fustel de. A Cidade Antiga. Lisboa. Clássica Editora. 1971. 


Sieyes, Emmanuel. Qu´est-ce que le Tiers État? Genebra. Droz, 1970,  180/segs.

Mannheim, Karl. Ideologia e Utopia. Porto Alegre. Globo,1956, 85.


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