terça-feira, 23 de março de 2021

PODER - VI

O conjunto de crenças, tradições, costumes, leis e princípios éticos e religiosos que regia a vida da cidade antiga recebia o nome genérico de constituição. Alguns reformadores como Minos (Creta, 1320 a.C.), Licurgo (Esparta, 898 a.C.), Filolau (Tebas, 890 a.C.), Solon (Atenas, 593 a.C.), baixavam normas disciplinadoras da vida social modificando o que estava em vigor na cidade-estado. Em Roma, as leis emanavam da primitiva organização social e política da cidade: populus (patrícios + clientes +  plebeus), rex (governante eleito pelos patrícios), senatus (assembleia dos patrícios idosos), comitium (assembleia do populus). Na idade média vigoravam as “leges fundamentales vel capitulaciones”, pactos entre o monarca e as hostes. Sob o absolutismo, havia distinção entre as leis do rei e as intangíveis leis fundamentais do reino. Na idade moderna, verifica-se a distinção entre normas constitucionais (hierarquia superior) e normas ordinárias. 
A palavra constituição compreende dois sentidos: (i) dinâmico = ação de constituir, fazer, organizar (ii) estático = obra resultante da ação constituinte, estrutura do ser, conjunto de elementos essenciais, sistema de regras fundamentais, organização formalizada. Como obra da ação constituinte, a constituição pode ser examinada quanto a matéria e quanto a forma, embora esses dois aspectos sejam inseparáveis. Materialmente, constituição é o conjunto de seres (constituintes) que estruturam outro ser (constituído). Formalmente, constituição é o modo pelo qual estão dispostos os elementos constituintes no ser constituído, a ordem que lhes é própria ou que lhes foi dada. Assim, por exemplo, materialmente, o átomo é constituído de prótons, neutros, elétrons e outras partículas; formalmente, ele é constituído de um núcleo (prótons, nêutrons) e de órbitas de elétrons, segundo leis da física. Materialmente, uma instituição é composta de pessoas e coisas; formalmente, compõe-se de regras que orientam e disciplinam a atividade dessas pessoas para consecução de determinados objetivos e que reúnem aquelas coisas em uma unidade patrimonial. 
A relação entre matéria e forma é quantitativa e qualitativa. O ser suporta mudanças quantitativas e qualitativas dos seus elementos constituintes até certo limite sem alteração essencial. Ultrapassado esse limite, o ser já não será o mesmo. Um animal, por exemplo, pode perder certa quantidade de sangue ou de tecidos musculares e, ainda assim, conservar a sua constituição física e a sua vida, porém, ultrapassado o limite da sua capacidade vital, ele passa por transformação qualitativa e se torna cadáver. Com o ser humano ocorre a mesma coisa. Fenômeno semelhante acontece com as instituições (família, empresa, estado): sofrem perdas de pessoal e de patrimônio; ultrapassado o limite suportável, a instituição se desagrega. Por outro lado, as instituições podem crescer e se desenvolver a um ponto que, em decorrência da complexidade atingida, transformam-se em outro tipo de organização. 
Do ponto de vista material, nem todo sistema abarca todas as nuances do seu objeto, todos os detalhes e acidentes. A realidade não cabe inteiramente no entendimento humano. Do múltiplo, a razão abstrai o essencial, o interessante, o útil, o necessário, de acordo com os fins perseguidos pelo sujeito pensante. Como diz Merton, referindo-se à teoria sociológica, um sistema global em que “as observações sobre todos os aspectos do comportamento, da organização e da mudança sociais encontrariam prontamente seu lugar preordenado tem o mesmo desafio estimulante e as mesmas promessas insignificantes daqueles sistemas filosóficos que procuram tudo abarcar e que caíram num merecido esquecimento”. Entretanto, como adverte Lassalle, a constituição material da sociedade não se compõe só de sistemas; inclui os fatores reais do poder que são a verdadeira constituição de um país. Ao tempo de Lassalle, esses fatores eram a monarquia, a aristocracia, os banqueiros, a grande e a pequena burguesias e a classe operária. 
Nessa linha, portanto, as forças sociais convergentes e divergentes formam um paralelogramo que compõe a constituição do estado. Poulantzas vê nas instituições como a igreja, a universidade, a empresa, o estado, centros de poder dominados pelas classes sociais. Esse poder caracteriza-se pela relação específica de dominação/subordinação vivenciada pelas classes sociais interna e externamente. Destarte, uma classe pode ter a capacidade de realizar interesses econômicos (sindicalismo operário) e não ter a capacidade de realizar interesses políticos. Cita como exemplo, a Inglaterra de 1683, onde o domínio econômico era da burguesia e o domínio político era da aristocracia fundiária. No Brasil, o sindicalismo operário fundou partido político e passou a participar dos governos municipais, estaduais e federal e da produção das leis (1980)  
Heller distingue (i) o poder da organização = capacidade de ação do todo segundo o seu volume e o seu conteúdo enquanto se desenvolve para dentro e para fora (mando versus obediência) combinação das atividades dos diversos agentes do poder entre si e em relação aos pacientes (ii) poder sobre a organização = apoio ao poder que decide sobre o ser e a forma da organização (iii) poder na organização = exercido por pessoas que, no caso concreto, aplicam e atualizam esse poder e concretizam em uma atividade individual o poder criado pela acumulação de atividades particulares.     
Coulanges, Fustel de. A Cidade Antiga. Lisboa. Clássica Editora. 1971. 
Porchat, Reynaldo. Curso Elementar de Direito Romano. São Paulo. Melhoramentos, 2ª edição. 1907.  
Paulino Jacques. Curso de Direito Constitucional. Rio. Forense. 1977, p. 22/24. 
Garcia del Corral. Corpus Juris Civilis. Cuerpo del Derecho Civil Romano. Espanha. 
Barre, Raymond. Economia Política. Vol I. Rio. Difel. 1978, p. 173/176.
Merton, Robert K. Sociologia, Teoria e Estrutura. São Paulo. Mestre Jou. 1970, p. 57/60.                  
Caveing, M. e G. Besse. Princípios Fundamentais de Filosofia. São Paulo. Hemus. 1970, p. 57/59.  
Lassalle, Ferdinand. Que é uma Constituição? Porto Alegre. Villa Martha. 1980, p. 21/34.
Poulantzas, Nicos. Poder Político e Classes Sociais. São Paulo. Martins Fontes. 1971, p. 110/111. 
Heller, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo. Mestre Jou. 1968, p. 290/291. 

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