domingo, 14 de março de 2021

PODER - III

O poder constituinte traz em si uma ideia de ordem que será formalizada na Constituição. A palavra ordem tem múltiplo significado: [i] comando do agente com poder de fato ou de direito sobre o paciente subordinado [ii] arranjo criterioso das coisas segundo certas relações entre elas [iii] lei do mundo natural e lei do mundo cultural [iv] resultado de um processo de organização fundado em: (a) valores materiais, éticos, místicos, religiosos (b) princípios lógicos, ideológicos, filosóficos (c) interesses individuais, classistas, gerais. 
Na visão lógica, normativa e teleológica de Maynez, “ordem é a submissão de um conjunto de objetos a uma regra ou a um sistema de regras cuja aplicação faz surgir entre ditos objetos as relações que permitem realizar as finalidades do ordenador”. Na opinião de Whitaker, nos períodos de crise política e social, que envolve o equipamento jurídico do estado, onde os fatos se adiantam ao direito, é que se impõe a revisão da Constituição e das leis.    
A lei fundamental do estado resulta tanto do exercício autocrático como do exercício democrático do poder constituinte. Por distinção terminológica, na primeira hipótese a lei escrita fundamental do estado tem sido denominada Carta por ser imposta unilateralmente pelo governante, remontando à tradição inglesa da Carta Magna de 1215; na segunda hipótese, a lei fundamental recebe o nome de Constituição por ser elaborada e votada pelos representantes do povo. Durante a experiência constitucional do estado brasileiro foram promulgadas: (i) as Cartas de 1824, 1937, 1967 e 1969, outorgadas respectivamente pelo imperador Pedro I, pelo presidente Getúlio Vargas e as duas últimas por oficiais superiores das Forças Armadas (ii) as Constituições de 1891, 1934, 1946 e 1988, votadas pelas respectivas assembleias nacionais constituintes.  
Posta pelo poder constituinte do povo, a Constituição conforma a base jurídica do estado democrático. Esse poder tem uma direção, uma pauta de ordenação com fins especificamente humanos. Governantes e governados devem-lhe obediência. A ordem daí decorrente tende à estabilidade, mas não à eternidade. O processo cultural e histórico é dinâmico. A ordem constitucional será substituída se não tiver a plasticidade suficiente para se acomodar às mutações sociais relevantes. Como diz Perelman, “obra do homem, ela (a lei constitucional ou ordinária) está submetida, como todas as coisas humanas, à força das coisas, à força maior, à necessidade”.  
A Constituição poderá ser reformada por exclusiva assembleia extraordinária ou pelo poder legislativo ordinário. Segundo Friedrich, não se deve confundir poder constituinte com poder de reforma, porque o primeiro é poder político de fato de mudar ou substituir a ordem vigente por uma nova Constituição, enquanto o segundo é poder político de direito, portanto, limitado, de mudar parte da ordem vigente. Loewenstein menciona a existência de mutações assimiladas pela estrutura material do estado que deixam intacto o texto constitucional. Da experiência dos EUA, cita os seguintes exemplos: (i) o controle judicial da constitucionalidade das leis não está expresso na Constituição, mas existe como se fora norma constitucional desde a célebre decisão do juiz Marshall, da Suprema Corte, no caso Marbury x Madison (ii) a proibição de reeleição do presidente da república por mais de dois períodos, que só passou a ser norma escrita mediante a Emenda XXII, porque a norma consuetudinária foi violada pela terceira reeleição de Franklin D. Roosevelt (iii) a utilização política do veto, o que elevou o presidente a “partner” do processo legislativo quando, originalmente, o veto destinava-se tão só para denunciar: (a) defeito técnico da lei (b) inaplicabilidade material da lei. 
No Brasil, o Congresso Nacional tem competência para reformar a Constituição, porém, não pode alterar as cláusulas pétreas: (i) forma federativa de estado, (ii) voto direto, secreto, universal e periódico (iii) separação dos poderes (iv) direitos e garantias individuais. Revisão total exige convocação de nova assembleia nacional constituinte.
Maynez, Eduardo Garcia. Filosofia del Derecho. México. Pórrua (1974, 23/25). 
Whitaker da Cunha, Luiz Fernando. Prefácio do livro de Antonio Sebastião de Lima: Poder Constituinte e Constituição. Rio. Plurarte (1983, 7).     
Perelman, Chaim. Logique Juridique, Toulouse. Dalloz (1979, 77/78).
Friedrich, Karl. Teoria y Realidad de la Organización Constitucional Democrática. México. Fondo de Cultura Económica (1946, 138/140).
Loewenstein, Karl. Teoria de la Constitucion. Barcelona. Ariel (1979, 145).


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