sábado, 20 de março de 2021

PODER - V

Poder e lei se implicam na estrutura e no funcionamento do estado. Na periferia de ambos, situa-se a legitimidade, qualidade do que é legítimo, exigência da natureza ética do ser humano. Tudo o que está em sintonia com um referencial aceito – empírico ou axiológico – conceitua-se como legitimo. Nesse conceito, há conotação de pureza e autenticidade. Do referencial constam visões de mundo e valores conforme a cultura de cada povo. O consenso geral obtido sem coerção confere legitimidade às coisas, às ideias, às ações e decisões. A crença na legitimidade é um dos fatores de sustentação do poder e da lei. Os governos buscam o reconhecimento da sua legitimidade nas esferas nacional e internacional.
Desvinculado da ética, o poder descamba para o despotismo e a fria legalidade. Além de racional, a natureza humana também é biológica, emocional e espiritual. As apetências humanas não são apenas físicas, mas, também, intelectuais, emocionais e espirituais, responsáveis pela inclusão da ética como real fenômeno nas relações intersubjetivas. Como realidade individual e social, a ética está na base da legitimidade do poder humano na sociedade e no estado. 
O referencial da legitimidade está em relação direta com o estágio cultural da nação. O que foi legítimo no século XVI pode não ser no século XXI. O que é legítimo para a China pode não ser para os EUA. Na opinião de Russell, esse relativismo – que me lembra Pascal: verdade aquém dos Pirineus, erro além dos Pirineus – não impede o conhecimento dos preceitos éticos como verdades equivalentes às da ciência. Para sustentar a sua opinião, o filósofo e matemático britânico arrola algumas proposições: [I] Do levantamento dos atos que suscitam sentimentos de aprovação ou desaprovação, verifica-se que, como regra geral, aprovados são os atos que se acredita terem, no saldo, efeitos de certa espécie, enquanto efeitos opostos devem resultar de atos desaprovados; [II] Efeitos que recebem aprovação definem-se como “bons” e os desaprovados, como “maus”; [III] Ato do qual, mediante evidência disponível, os efeitos sejam provavelmente melhores do que os de outro ato possível nas circunstâncias é definido como “certo” e o outro, como “errado” (deve-se praticar o ato “certo”); [IV] Certo é aprovar um ato certo e desaprovar um ato errado. Nessa linha, o que Wiener, matemático estadunidense fundador da cibernética dizia de um indivíduo, pode-se aplicar, mutatis mutandi, a uma nação: Importa pouco que o bando militar em que o indivíduo (ou a nação) se alista seja o de Inácio de Loyola ou o de Lênin, desde que ele (ou a nação) considere mais importante que as suas crenças estejam do lado certo do que a sua liberdade
Legitimidade não decorre necessariamente do êxito de uma revolução. Desta, invariavelmente resulta uma legalidade cuja eficácia pode ser obtida mediante coação física e psicológica o que, por si só, não lhe confere legitimidade. Entretanto, a obediência geral sem contestação induz ao consenso tácito e à presunção de legitimidade. Sobre esse tema, Timacheff entende que a obediência geral dá nascimento a um juízo deontológico: deve-se obedecer ao poder estabelecido. Garantindo as regras éticas, o poder coloca-se a serviço da justiça. “O poder perde, ao mesmo tempo, o seu aspecto personalizado e adquire a natureza de um poder objetivado, de um poder a serviço da ideia de justiça”. Na opinião de Weber, um mínimo de vontade de obediência, ou seja, de interesse em obedecer, é essencial a toda relação autêntica de autoridade. 
O poder absoluto do monarca no continente europeu até o século XVIII era legítimo enquanto os súditos o reconheciam, pois, viam na ordem correspondente um fato natural e tradicional, o reflexo das suas crenças, a expressão da vontade divina. Quando essas crenças mudaram ao surgirem novas ideias, técnicas e necessidades comuns alterando o referencial de legitimidade, o poder absoluto do monarca tornou-se ilegítimo. No século XX, os poderes de Mussolini e de Hitler eram legítimos nos seus respectivos países (i) enquanto refletiam o ideário comum, as crenças e aspirações do povo italiano e do povo alemão (ii) enquanto esses povos achavam suas crenças e aspirações mais importantes do que as suas liberdades. Na segunda guerra mundial, as forças aliadas quebraram o encanto (Reino Unido + União Soviética + Estados Unidos + China + Australia + Brasil e outros estados). Por não se ajustarem ao referencial ético da civilização ocidental, atos praticados pelos vencidos durante a guerra foram considerados criminosos pelos vencedores (1939/1945). O referencial dos vencedores foi colocado acima do referencial dos vencidos. Ante essa hierarquização combinada com a insuficiência do positivismo jurídico, os juízes afastaram a máxima positivista “a lei é a lei” (benéfica aos acusados) no julgamento dos nazistas no tribunal de Nuremberg; aplicaram o direito natural. Como Perelman anotou, os acontecimentos da Alemanha a partir de 1933 mostraram (i) a impossibilidade de se identificar o direito com a lei (ii) a existência de princípios que, embora não expressos na lei, a todos se impõem (iii) que o direito expressa não apenas a vontade do legislador, mas, também, valores que ele tem por missão promover, entre os quais avulta o valor de justiça. 
Diante daquela amarga experiência histórica, a Organização das Nações Unidas incluiu na sua Carta um referencial de legitimidade confirmado na Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada em resolução da III Sessão Ordinária da Assembleia Geral, com as seguintes diretrizes: (i) existência de direitos fundamentais do homem (ii) dignidade e valor da pessoa humana (iii) igualdade de direitos do homem e da mulher (iv) progresso social e melhores condições de vida em uma ampla liberdade (v) igualdade das nações grandes e pequenas (vi) justiça e respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes de direito internacional. O poder e a lei serão considerados ilegítimos quando discreparem desse referencial. 
Russell, Bertrand. Ética e Política na Sociedade Humana. Rio. Zahar. 1977, p. 109/110.
Wiener, Norbert. Cibernética e Sociedade. São Paulo. Cultrix. 1968, p. 187.
Timacheff, Nicolai. Le Droit, l´ethique, le pouvoir. Archives de Philosophie du Droit. Paris. 1936, p. 133/segs.
Weber, Max. Economia y Sociedad. V. I. México. Fondo de Cultura Económica. 1964, p. 170. 
Perelman, Chaim. Logique Juridique. Toulouse. Dalloz. 1979, p. 70.

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