terça-feira, 3 de abril de 2018

AD TERROREM

Às vésperas do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) do Habeas Corpus preventivo impetrado em favor de Luiz Inácio Lula da Silva, pousam nos gabinetes dos ministros, petições (algumas apelidadas de “peças técnicas”) instruídas com abaixo-assinados, umas a favor da vigência do acórdão de 2016 que permitiu a prisão do condenado após decisão confirmatória em segundo grau de jurisdição; outras a favor da vigência da norma constitucional que exige o trânsito em julgado da sentença penal condenatória para que alguém seja considerado culpado.
A petição e o abaixo-assinado que defendem o acórdão do STF vêm firmados por membros do ministério público e por juízes. A petição e o abaixo-assinado que defendem o vigor da norma constitucional vêm firmados por advogados. Milhares de assinaturas de ambos os lados. Apesar disto, são documentos pouco representativos, pois o número de membros do ministério público federal e estadual e de juízes federais e estaduais é cinco vezes maior do que o de subscritores, e o número de advogados inscritos na OAB é cem vezes maior. 
Os membros do ministério público e os juízes, para vergonha das suas respectivas instituições, servem-se de argumento ad terrorem. Para atemorizar, pressionar e constranger os ministros do STF e a população brasileira, dizem que a revisão do acórdão colocará em liberdade ou impedirá a prisão de muitos assassinos, ladrões, estupradores, além dos corruptos. O uso de tal sofisma já indica a fragilidade da pretensão. Há muitos desses bandidos com a sentença condenatória já transitada em julgado. Logo, não serão liberados antes de cumprirem as respectivas penas. Há outros presos em flagrante delito ou em caráter provisório que não se livrarão imediatamente. Por derradeiro: preferível um bandido solto do que um inocente preso. O espírito punitivo dos agentes do estado há de ser temperado com o espírito de liberdade da nação democrática e com o respeito à dignidade humana.
Outrossim, os ministros já formaram as suas convicções e formularam por escrito os seus votos. Uns a favor, outros contra, a concessão do habeas corpus. Apenas não sabemos, ainda, quais serão os vencedores. Portanto, sustentações orais e documentos apresentados depois das alegações finais, dificilmente mudarão os votos. Aliás, no rigor processual e em atenção à garantia da ampla defesa, o impetrante tem direito à vista do processo para se pronunciar sobre o teor e o valor probatório de tais documentos. 
Até 1988, eu e meus colegas de varas criminais, na capital do Estado do Rio de Janeiro, ao condenar os réus, determinávamos a imediata expedição do mandado de prisão. O réu só podia apelar da sentença depois de recolhido ao presídio. O limite da presunção de inocência era a sentença de primeiro grau de jurisdição. O fecho da sentença era: “Expeça-se mandado de prisão e lance-se o nome do réu no rol dos culpados”. Tudo em perfeita sintonia com a regra processual penal em vigor.
Com o advento da Constituição de 1988, a regra mudou. Condenado, o réu podia apelar em liberdade. A presunção de inocência estendeu-se até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. O fecho da sentença passou a ser: “Transitada em julgado, expeça-se mandado de prisão e lance-se o nome do réu no rol dos culpados”.
Em artigo publicado no jornal impresso “Tribuna da Imprensa” do Rio de Janeiro (deixou de circular em 2008) posicionei-me contra a mudança. Interpretei-a como esperteza dos deputados constituintes que teriam legislado em causa própria. A nova regra beneficiaria os parlamentares bandidos do senado federal, da câmara dos deputados, das assembleias legislativas e das câmaras municipais. Os seus crimes prescreveriam antes do trânsito em julgado das suas eventuais condenações. Ficariam impunes. Além disto, a referida norma era um desprestígio à magistratura do primeiro e do segundo grau. Considerei absurda a liberdade do réu depois de condenado no devido processo legal e usufruído de todas as garantias como a do contraditório, da ampla defesa, do juiz natural. Entendi que a presunção de inocência não podia prevalecer diante da certeza emanada do processo regular formador da convicção do juiz. A certeza, ainda que provisória, se sobrepõe à presunção.  
Todavia, não se deve fechar os olhos à realidade. Ante os abusos, arbitrariedades, ilegalidades, inconstitucionalidades, inclusive o conluio entre acusador e julgador, tudo ocorrido a partir do caso “mensalão” e com maior descaramento nas operações tipo “lava-jato”, comecei a mudar de opinião. Passei a crer que, mesmo sem essa intenção, o legislador constituinte acertou ao introduzir no ordenamento jurídico brasileiro a norma constitucional que deu maior extensão ao princípio liberal da presunção de inocência. Não se pode mais confiar na imparcialidade e na honestidade da justiça federal (entendida como polícia, ministério público, juiz e tribunal) de primeiro e segundo grau. Antes da prisão, tornou-se necessário o exame dos casos pelos graus superiores (STJ e STF) a fim de assegurar a supremacia da Constituição da República e de garantir a liberdade e o patrimônio econômico e moral dos cidadãos brasileiros.
Outrossim, sob o ângulo estritamente jurídico, o acórdão de 2016 do STF viola frontalmente o sistema constitucional brasileiro. Daí, ser imperioso retirá-lo do ordenamento jurídico. A norma alvejada pela decisão de 2016 é uma cláusula pétrea da Constituição de 1988. Como tal, só pode ser modificada por uma assembleia nacional constituinte. Essa cláusula não pode ser legitimamente alterada pelos poderes constituídos (Legislativo, Executivo, Judiciário). Assim é – e deve ser – quando: (i) vigora a soberania popular (ii) o poder constituinte pertence ao povo (iii) o estado é de direito (iv) a forma de governo é democrática.  

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