sábado, 14 de abril de 2018

REBELIÃO NO TRIBUNAL

Dos recentes debates e votações nas sessões plenárias do Supremo Tribunal Federal (STF), percebe-se a rebelião dos ministros mais novos contra consolidadas posições jurídicas dos ministros mais antigos. A normal casuística (“cada caso é um caso”) e as diferenças singulares próprias dos órgãos colegiados na compreensão dos fatos e na interpretação das regras, foram insuficientes para mascarar a rebeldia.   
O grupo mais novo é maioria: Alexandre, Luiz Edson, Luís Roberto, Rosa Maria, Luíz e Carmen Lúcia. Esse grupo pretende mudar a Constituição da República mediante interpretação judicial. À semelhança da suprema corte dos EUA, cogita filtrar os casos que merecem apreciação pelo tribunal, inclusive habeas corpus, o que aliviaria a carga de trabalho e permitiria maior celeridade na solução dos temas mais importantes. Embora sem competência para tanto, esse grupo tem exercido o poder constituinte, cujo titular é o povo, e o poder de reforma constitucional, cujo titular é o Congresso Nacional. Na judicatura dessa facção prevalecem os aspectos políticos, inclusive partidários. Os seus componentes são [i] receptivos às opiniões publicadas em jornais, revistas, programas de televisão [ii] sensíveis aos lobbies de corporações nacionais e estrangeiras [iii] seletivos no que tange às opiniões e pressões oriundas de outras fontes (ministérios, universidades, associações civis, redes sociais).
O grupo mais antigo é minoria: José Celso, Marco Aurélio, Gilmar, Enrique Ricardo e José Antonio. Esse grupo é a favor da pureza dos princípios e regras da Constituição da República. Pretende manter as atuais atribuições do tribunal, sem ênfase no fator político partidário. No que tange à reforma constitucional, o grupo reserva tal incumbência ao Congresso Nacional. Na judicatura, conforma-se à letra e ao espírito das normas constitucionais e resiste com maior vigor à influência dos meios de comunicação social e às pressões internas e externas.
O STF tem como dever institucional guardar a Constituição. Os ministros do grupo mais novo, ao invés de cumprirem esse dever, estupraram a jovem sob a sua guarda. O pai da jovem quer reparação, mas não sabe a quem recorrer. Perdeu a confiança nos parlamentares, nos governantes, na justiça estatal e na autoridade religiosa. Como Diógenes, com lanterna acesa sob a luz do dia, procura pessoa honesta e confiável.    
Certa vez, nos anos 70, José Carlos, meu colega de toga na magistratura do Estado da Guanabara, contou-me proverbial anedota. “Um chinês andava pela calçada quando outro chinês, do alto de uma construção, cuspiu-lhe na cabeça.  O pedestre olhou para o ofensor que estava acima e perguntou: que bem eu te fiz?”.
Ao receber benefício de alguém (ajuda financeira, alimentos, roupas, bens móveis e imóveis, cargo público ou emprego privado, apoio moral, intelectual e espiritual) o sujeito beneficiado sente-se às vezes mais devedor do que grato, mais ferido no seu orgulho do que conformado com a sua sorte. No recôndito da sua alma, aninha-se o ovo da serpente. Na ocasião propícia, o sentimento perverso romperá a casca.     
Nomeada ministra do STF por Luiz Inácio Lula da Silva, então Presidente da República, Carmen Lúcia, no exercício do Voto de Minerva, votou contra o seu benfeitor. Negou-lhe a ordem de habeas corpus. Abriu ao réu as portas de entrada no presídio. Sabe-se que tanto no processo administrativo disciplinar quanto no processo judicial criminal, o Voto de Minerva favorece o acusado. Talvez para mostrar independência, Carmen Lúcia violou a tradição e a ética. Agarrou-se ao róseo e falacioso argumento de fidelidade às suas decisões em outros casos. O detentor do Voto de Minerva guarda para si a sua convicção e dá prioridade ao seu dever institucional. Bom caráter e civilidade são essenciais. Provavelmente, opção partidária, pressão da TV e dos juízes federais, pesaram no malfadado voto da presidente do STF.  
Nas recentes sessões, os ministros trataram do habeas corpus (HC), dissertaram sobre a história desse instituto jurídico, mencionaram a doutrina brasileira elaborada pelo STF à qual os ministros do grupo mais antigo se mantêm fiéis. A ciência habita o intelecto dos ministros. Urge que o saber científico e filosófico combinado como o “saber de experiência feito” (Camões) penetre na consciência dos magistrados de maneira que a lógica não se divorcie do bom senso, que a paixão não obscureça a razão, que a legalidade se harmonize com a legitimidade, que a utilidade não sufoque a honestidade, que a gramática não aniquile o espírito da lei.  
No julgamento do HC impetrado a favor de Antonio Palocci, que foi parlamentar e ministro de estado, a maioria dos ministros votou pelo não conhecimento (11/12-04-2018). Filigrana herética, pois estavam satisfeitos: [1] os pressupostos processuais (capacidade postulatória do impetrante, juiz competente, procedimento disciplinado em lei) e [2] as condições da ação (legitimidade das partes, paciente privado da liberdade de locomoção, possibilidade jurídica do pedido, legítimo interesse de obter a tutela jurisdicional). Apesar de cabível recurso ordinário, o HC foi utilizado corretamente pelo impetrante como recurso processual substitutivo (CPP, Livro III, Título II “Dos Recursos em Geral”, Capítulo X “Do Habeas Corpus e seu Processo”).
A hipótese, portanto, não era de “não conhecimento” e sim de deferimento ou indeferimento do pedido, conforme estivesse presente ou ausente a ilegalidade da prisão ou o abuso de poder na sua decretação. Salvo postulação teratológica, as tecnicalidades da ação judicial comum não devem obstar o conhecimento do pedido de HC. “Conhecer do pedido”, em linguagem jurídica processual, não significa julga-lo procedente ou improcedente. Significa, tão somente, admitir o exame da matéria. Dada a relevância dessa garantia constitucional da liberdade para qualquer nação civilizada e democrática, o exame da impetração tem que ser regra imperativa. Desse exame resultará a concessão ou a denegação da ordem, a liberdade ou a prisão do paciente. A mentalidade cristalizada dos ministros impediu, na prática forense e no caso concreto, que eles enxergassem a diferença entre ação judicial comum e a especial natureza do HC no que tange ao procedimento e à questão de fundo.      
Certa vez, já funcionando a TV Justiça, o ministro Marco Aurélio, em sessão plenária, contou que o tribunal conhecera de um pedido de HC manuscrito e assinado por um presidiário em papel de baixa qualidade enviado pelo correio. A informalidade não impediu o exame da matéria. Os tempos eram outros. O tribunal não se furtaria ao exame ainda que o pedido viesse no interior de uma garrafa encontrada na praia trazida pelo mar. Hoje, se carta como aquela caísse nas mãos de um dos ministros novos, ele a rasgaria e com cara de nojo lançaria os pedaços na cesta de lixo.    
O HC de Palocci foi impetrado contra decisão interlocutória que decretara prisão cautelar. Sentença posterior manteve a prisão. Portanto, a coação não sofreu solução de continuidade. Cabia ao tribunal decidir se a coação era legal ou ilegal. O grupo majoritário preferiu julgar o pedido prejudicado (não conhecer do HC). Debateu-se, a seguir, a concessão de ofício da ordem de HC (independente do pedido do paciente), principalmente porque o réu estava preso por mais tempo do que determina a lei, fato que torna ilegal a coação. (CPP 654, 2º + 648, II). Cabia ao tribunal decidir se havia justa causa para o excesso de prazo, eis que o impetrante estava preso há mais de 18 meses sem que selada estivesse a sua culpa, pois a sentença ainda não transitara em julgado. A maioria decidiu que sim. Ante a complexidade dos fatos, a pluralidade no polo passivo da relação processual, as numerosas testemunhas e diligências, o excesso estava justificado. [Se o réu não contribuiu para o excesso, justificada estaria a sua soltura]. A maioria entendeu ainda presentes as circunstâncias que autorizam a prisão preventiva (CPP 312). Ao paciente foram negadas medidas restritivas de direitos que substituiriam a prisão. Ele permanecerá preso até segunda ordem ou enquanto não lhe favorecer o regime legal de cumprimento da pena.
O acórdão do STF no HC dificultará o provimento dos recursos do réu Antonio Palocci no tribunal regional e no superior tribunal de justiça. Entretanto, não está descartada a hipótese de nulidade processual. As costumeiras ilegalidades e arbitrariedades praticadas nas operações do tipo lava-jato tornam plausível essa hipótese. 

Nenhum comentário: