quinta-feira, 5 de abril de 2018

EXAGEROS

Nesta quadra da história do Brasil, cidadãos e partidos da esquerda e da direita se confrontam no plano ideológico e nas vias de fato, secretando ódio e raiva, agem com violência verbal, física e moral. A justiça estatal (polícia, ministério público, magistratura) descumpre a lei e afronta os direitos fundamentais declarados na Constituição da República (CR). Acentua-se a divisão entre as diferentes camadas da sociedade dificultando o entendimento mútuo. As manifestações públicas de representantes dos poderes civil e militar são interpretadas segundo a bílis de cada indivíduo. As análises dos fatos e dos textos são mais emotivas do que racionais.
Examinando a frio, nada há de grave nas afirmações dos comandantes do exército e da aeronáutica. Não se vislumbra ameaça alguma. Disseram o que pensa e sente a maioria da população: somos contra a impunidade. Só os bandidos, com colarinho branco ou sem colarinho, é que são a favor da impunidade. Há centenas de milhares de bandidos punidos pela justiça estatal cumprindo pena nos presídios. Algumas dezenas de milhares são de presos provisórios. Portanto, no Brasil não há impunidade, salvo no que concerne aos cidadãos intocáveis. A impunidade é de uma porção mínima da sociedade brasileira, o que não justifica intervenção militar. A maioria do povo é contra, não apenas a impunidade que ocorre dentro e fora dos tribunais, dentro e fora dos quartéis, mas, também, contra a injustiça praticada dentro e fora dos tribunais, dentro e fora dos quartéis.
A declaração dos militares foi recebida com desconfiança e alarme porque: (i) feita às vésperas do julgamento do habeas corpus (HC) impetrado a favor do ex-presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva (ii) pesa sobre a população brasileira o precedente de 1964. Todavia, nota-se, à distância, que os comandantes apenas confirmam o seu compromisso de respeitar a Constituição e que estão prontos a cumprir com os seus deveres constitucionais. Entre esses deveres está o de garantir a lei e a ordem sempre que o poder civil constituído requisitar a intervenção das forças armadas. A intenção foi a de: (i) atenuar a tensão (ii) evitar conflitos motivados pelo julgamento da referida ação judicial (iii) advertir a população de que as forças armadas estão atentas e prontas a servir (iv) confirmar o seu apreço pelas instituições democráticas. 
A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) dirigiu o mesmo apelo à nação. Sabia, de antemão, graças às informações interna corporis, que o pedido de habeas corpus seria negado. Contava com os votos do relator (Edson) e dos ministros Alexandre, Roberto, Rosa, Luís e o dela (Carmen). Aliás, parte do público e da família forense já previa esse resultado.
A estratégia da direita no STF foi exitosa: (i) não colocar em pauta o julgamento das ações de inconstitucionalidade que impugnavam o acórdão do STF sobre a prisão do réu após condenação em segundo grau de jurisdição (ii) retirar o processo da Turma (onde o HC seria concedido) e leva-lo a julgamento pelo plenário (onde o HC seria negado). Como se vê, politicagem não existe apenas no Legislativo e no Executivo, mas, também, no Judiciário. Tudo farinha do mesmo saco, com toga ou sem toga.          
Na sessão de julgamento, os votos da direita prevaleceram (6 x 5). Forte no Sul do Brasil (de onde vieram Alexandre, Luiz Edson. Rosa Maria, José Antonio, Enrique Ricardo e José Celso) o nazifascismo também atua em outras regiões e goza da simpatia de agentes políticos e de agentes administrativos dos três poderes da república (Legislativo, Executivo e Judiciário).
Apesar disto, forçoso reconhecer a juridicidade dos votos vencedores. Os ministros se apoiaram no texto constitucional: “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder” (CR 5°, LXVIII). No caso concreto, o paciente estava ameaçado de prisão. A ameaça provinha de uma decisão judicial tomada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Tal decisão observou o devido processo jurídico, proferida que foi em sintonia com as normas constitucionais e infraconstitucionais, estribada na mais recente jurisprudência do STF. A coação sobre a liberdade de locomoção do paciente, pois, era legítima. Daí, a correta denegação do HC do ponto de vista jurídico formal.       
Ao contrário dos vencedores, os votos vencidos ampliaram os fundamentos da questão para tratar do tema que lhe está na base: a vigência e a eficácia da norma constitucional: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (CR 5º, LVII). Sustentaram a supremacia dessa garantia constitucional sobre o acórdão do próprio STF, de 2016, que lhe reduziu o alcance. A execução imediata da prisão se lhes pareceu precipitada e inconstitucional. Daí, a justa concessão do HC do ponto de vista jurídico substancial e da política do direito.   
Cuida-se de questão pendente a ser resolvida no julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade sob a relatoria do ministro Marco Aurélio. Considerando que essa questão maior está sub judice, portanto, ainda sem definição, os ministros José Antonio, Enrique Ricardo, Gilmar, Marco Aurélio e José Celso, entenderam que a prisão do réu neste momento era precipitada e não devia ser efetivada enquanto não fossem julgadas aquelas duas ações sobre a matéria ou, pelo menos, enquanto o STJ não julgasse os recursos interpostos das decisões do juiz curitibano e do tribunal gaúcho proferidas na ação penal proposta contra o ex-presidente da república.       
Tanto a direita como a esquerda no STF convergem no entendimento de que o princípio liberal da presunção de inocência vigora no ordenamento jurídico brasileiro. Divergem apenas no que toca a extensão do princípio, ou seja: o limite da sua incidência. A direita entende que o espaço da presunção vai até o segundo grau de jurisdição. A partir daí, é possível a prisão do condenado. A esquerda entende que o espaço da presunção vai até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, nos precisos termos da garantia constitucional. Só então efetivar-se-á a prisão, se persistir a sentença condenatória.
A direita e a esquerda resolverão essa pendência no julgamento das citadas ações de inconstitucionalidade. Ante o fato novo, a saber, a decisão denegatória do pedido de HC e a efetiva prisão do réu, a defesa poderá pedir tutela provisória de urgência de caráter incidental ao relator das referidas ações nos termos da processualística civil, como permite o código de processo penal (Art. 3°). Assim como há prisão cautelar ou provisória, também há liberdade cautelar ou provisória. A decisão do tribunal nas mencionadas ações poderá prestigiar a letra e o espírito da norma constitucional (CR 5º, LVII). Nesta hipótese, o réu somente será preso após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Verificada tal hipótese, a prisão antes disso, mais do que ilegal, será inconstitucional.   

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