quinta-feira, 19 de abril de 2018

O CEGO VISIONÁRIO

- Fico triste quando estou contigo.
- Não diga isto. Aborrece-me. Por que a minha companhia te entristece?
- Porque você não consegue ver o mundo.
- O cego sou eu e não você. Como estou conformado e não triste com minha cegueira, parece-me pouco razoável você se entristecer.
- Desculpe. Longe de mim te melindrar. Eu bem sei que a trava ocular distingue-se da trava mental e da falta de lucidez racional. É que, por ser teu amigo e prezar a tua amizade, eu gostaria que você enxergasse as estrelas, o azul do céu e do mar, o voo dos pássaros, o verde das florestas e das matas, o colorido das flores, o relevo das montanhas, planícies, vales, rios, as casas, ruas, praças, os edifícios de alturas incríveis, as esculturas, as pinturas, os filmes, enfim, os cenários da natureza e da cultura.
- Eu é que apresento as minhas escusas se te passei a impressão de que me ofendera. Apenas fiquei surpreso com a tua confissão. Nada mais. No que tange a esse mundo de imagens que você acaba de mencionar, talvez não me fizesse mais feliz do que já sou. Eu teria de abandonar o mundo que conheço desde a infância e troca-lo por um mundo desconhecido no qual veria coisas desagradáveis. Eu detestaria ver: o morticínio e os danos causados por bombas que uma nação atira sobre outra, o patrimônio público deteriorado, obras públicas inacabadas por incúria das autoridades, o desperdício e o desvio das verbas públicas, a blindagem e a impunidade dos delinquentes intocáveis, a perseguição desumana empreendida pelos poderosos contra os mais fracos ou contra os que ousam opor-lhes resistência, pessoas brutalmente assassinadas por pensar diferente e manifestar o seu pensamento, machucadas pela truculência policial, amontoadas em presídios como coisas sem valor, os inocentes aprisionados e condenados por juízes venais, a crueldade da fogueira, da asfixia, do enforcamento, do esquartejamento, as crianças mortas por falta de comida, de abrigo ou por negligência dos cuidadores, cadáveres abandonados nas ruas e valas, o desespero de famílias cujos provedores perderam a fonte de renda, filhos que matam os pais, companheiros que se matam, a poluição e a destruição das coisas da natureza  e da sociedade. 
- Ora, isto eu também não gosto de ver, mas são ocorrências do mundo que afetam tanto os saudáveis como os deficientes. A realidade do nosso mundo é bipolar: vida e morte, saúde e doença, prazer e dor, luz e trevas, ciência e ignorância, verdade e falsidade, sinceridade e hipocrisia, bondade e maldade, amor e ódio, beleza e feiura, alegria e tristeza, justiça e injustiça. A dualidade está na base da natureza humana: angelical e demoníaca. Portanto, você veria também os aspectos positivos do mundo e não apenas os negativos. Você veria obras artísticas de grande beleza, instituições dedicadas ao bem, a fazer justiça, a prestar assistência aos necessitados, a ensinar e afastar as trevas da ignorância, a curar os doentes do corpo e da alma, a proteger a fauna, a flora, os mananciais, pessoas de bom caráter, justas, afáveis, solidárias, fraternas, dedicadas à cultura física, intelectual e espiritual, famílias harmônicas, nações que buscam o convívio pacífico, se ajudam e se respeitam.    
- Diga-me: quando reza, você fecha os olhos?
- Sim, para me harmonizar com a divindade.
- Quando medita, você fecha os olhos?
- Sim, para me concentrar e ampliar a minha consciência.
- Quando se relaciona sexualmente com a tua companheira, você fecha os olhos?
- Em determinado momento, sim, para desfrutar mais o prazer.
- À noite, em teu quarto, antes de iniciar o teu relacionamento com a companheira, você apaga a luz?
- Às vezes eu, às vezes ela.
- Por que vocês ficam no escuro? Não seria melhor ficar no claro, tocando-se, um vendo o corpo do outro, olhos nos olhos, num gozo mútuo?
- Não. A intimidade é mais aconchegante no quarto às escuras. Eu e ela nos sentimos livres como se estivéssemos, em segredo, a compartilhar um bem precioso na paixão que nos envolve.
- Creio que você está me falando do verniz. Existe algo mais profundo nesses cuidados. Eu acho que vocês ficam no escuro para não ver o pecado que estão cometendo. Ambos querem se livrar da culpa.
- Meu deus! Que viagem! Engano teu, redondo e quadrado. O que há de profundo nessa relação é o amor. Desfrutamos da liberdade de pratica-lo de modo variado de acordo com os nossos desejos e a nossa vontade.     
- Que seja! Contudo, o subconsciente armazena o gene da religiosidade transmitido de geração a geração. A herança cristã recebida dos teus ancestrais inclui o germe da culpa. O pecado original de Adão e Eva pesa sobre cristãos como você e a tua companheira.
- Para teu governo: eu não estou nem ai com esse pecado e essa culpa originais. Eu e minha companheira estamos muito na nossa usufruindo os prazeres da vida.
- Objetivamente, acredito. Vocês dois se incluem nas exceções, porquanto na maioria dos humanos, o sentimento religioso e a tradição religiosa são muito fortes. A Bíblia, livro sagrado dos judeus e cristãos, diz que o primeiro casal humano vivia num jardim plantado por deus na estepe denominada Éden localizada na região mediterrânea da Ásia morena, com toda sorte de árvores de aspecto agradável e de frutos bons para comer. Esse jardim era o paraíso com todo o seu esplendor. Isto indica que o casal ainda não defecava. Destacavam-se duas árvores: a da vida, no meio do jardim, e a da ciência do bem e do mal, nas adjacências. Deus proibiu o homem de comer o fruto desta segunda árvore. Adão e Eva desobedeceram a ordem do deus criador e comeram o fruto proibido.
- Apreendo conotação sexual nesse episódio narrado por você. O meio do jardim corresponde simbolicamente à parte anatômica dos órgãos reprodutores externos do corpo humano. A relação carnal entre o homem e a mulher gera prazer paradisíaco. Talvez, nessa versão bíblica, esteja a origem da expressão vulgar: “fulano comeu fulana”.  
- Não só você pensa assim, como também quase todos os judeus e cristãos. Adão e Eva se relacionaram sexualmente. Irritado com isto, o deus criador puniu os desobedientes: a mulher, com a gravidez dolorosa e submissão ao marido; o homem, com trabalhos penosos. A humanidade conviverá até o fim dos tempos com essas duas maldições divinas: gravidez e trabalho. No citado episódio também há conotação moral, pois refere-se ao bem e ao mal, portanto, ideias morais. O bem praticado pelos humanos desperta a graça divina. O mal praticado pelos humanos desperta a ira divina. Daí, o preceito deontológico fundamental: todos têm o dever de obedecer a lei divina; quem desobedecer será punido.        
- De onde você tirou tudo isto?
- Da minha cabeça é que não foi. Já disse: da Bíblia. Está lá com todas as letras nos três capítulos iniciais do Gênesis, primeiro livro do Antigo Testamento, que tratam da criação do mundo, do paraíso e da culpa original. Em termos racionais, a árvore da vida é objeto de estudo da Filosofia Natural e das ciências físicas. A árvore da ciência do bem e do mal é objeto de estudo da Filosofia Moral e das ciências morais.    
- Caro amigo. Eu e a minha companheira sequer temos Bíblia em casa. Nunca a lemos. Eu nem sabia que essa escritura religiosa era composta de uma porrada de livros, cerca de 70, a maior parte deles judaica e a menor parte cristã. Conotação moral resulta do juízo humano e não do juízo divino. Os líderes religiosos inventam mandamentos que qualificam de divinos para obter a obediência do povo. Os líderes políticos aproveitam-se da ética religiosa para obter do povo obediência às leis por eles estabelecidas. Na verdade, as únicas leis divinas existentes são as da natureza, muitas das quais a inteligência humana já descobriu. 
- Você também é caro, amigo. O almoço completo, com vinho, sobremesa e cafezinho, custou uma nota! Saindo da digressão e retornando à estrada principal, lembro da pouca influência do intelecto no campo da fé. Trata-se da crença arraigada na família judia e cristã. Assim como Adão e Eva cobriram as partes pudendas com folhas de figueira e se esconderam “da face do Senhor” entre as árvores do jardim, os crentes também se escondem no quarto escuro para que o “Senhor” não os veja copulando.   
- Discordo. Trata-se de privacidade, recato, pudor, que distinguem os humanos dos animais irracionais.
- Respeito a tua discordância. Penso, entretanto, que tais conduta e sentimentos têm origem ancestral na crença básica de uma cultura religiosa da qual, por vezes, não estamos objetivamente conscientes. No seio de tribos indígenas, cuja cultura difere da judia e da cristã, vige com naturalidade o coletivismo também nas relações sexuais.  Nem por isto os indígenas devem ser classificados entre os animais irracionais. Há cristãos que apreciam copular em grupo, com ou sem troca de casais. Outros praticam às claras nos bordéis, nas sacristias ou nos gabinetes, com ou sem charutos. Mas, o que eu queria consignar com as minhas observações, era o fato de as pessoas cerrarem os olhos e ficarem cegas para o mundo exterior em momentos importantes da vida.
- Vamos lá! A realidade do mundo não é apenas aquela que os olhos enxergam. Fechamos os olhos para sentir melhor o sabor de uma iguaria, o perfume de uma flor ou de alguém. Ao atingir o orgasmo fechamos os olhos e nos deliciamos. Fechamos os olhos também à miséria alheia, à violência quando dela não somos vítimas, aos desvios dos nossos parentes e amigos. Algumas vezes, deixamos de enxergar o que está diante do nosso nariz, ou o que está encoberto pelas aparências. Sob o manto da existência, passa despercebida a essência.    
- Concordo. Quanto a mim, não preciso fechar os olhos porque já os tenho fechados de nascença. Aprendi os cuidadosos procedimentos para andar pela casa e pelas ruas, satisfazer as minhas necessidades, executar tarefas, exercer profissão, ser útil à sociedade.
- Creio que isto seria bem melhor se você enxergasse e dependesse menos da bengala, do cão, da escrita especial e da atenção de outras pessoas. 
- Quem sabe? Mesmo enxergando, eu dependeria dos meios de transporte, da atenção dos pais, dos professores, dos médicos, dos prestadores de serviços, de coisas fabricadas por outras pessoas, do mercado, e assim por diante. No entanto, há coisas por mim percebidas que você possivelmente não percebe com os teus olhos. 
- O quê, por exemplo?
- As vibrações que emanam das pessoas, dos animais e das coisas. Pela tom da fala ou pelo abraço, eu percebo quando a pessoa está mentindo, não está sendo sincera ou está comovida. Sinto a calma ou a ansiedade de quem fala no ambiente. Pela proximidade, pelo silêncio e pelo tremor, percebo quando o cão está doente. Pelo som, percebo quando estou próximo ou longe da geladeira ou de algum motor. Neste mundo sem imagens em que vivo sinto odores e perfumes, o gosto de bebidas e comidas, o frio, calor, dor, prazer, alegria, tristeza, afeição, raiva, indiferença. Ouço música que provoca emoções na minha alma.  
- Certo. Mas você carece da satisfação de ver a beleza de um templo religioso.
- Ver, eu não vejo, mas sinto o clima de religiosidade em seu interior talvez de modo mais agudo do que o portador de suficiência visual. Quando as pessoas mergulham dentro de si mesmas, elas não precisam dos olhos. O êxtase místico geralmente ocorre quando a pessoa está de olhos fechados. Provavelmente, eu e você acessamos o mesmo mundo espiritual. Eventual diferença estará na frequência vibratória do contato. Cada qual tem a sua própria e indescritível experiência extática.      
- O que eu posso dizer por experiência própria é que na densa escuridão de um quarto fechado, desde que acostumados, os olhos enxergam o que lhes impede a luz do dia.
- Não entendi. Falta-me a possibilidade física de tal experiência. 
- Pois é. E eu não sei explicar.


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