“Pobre gosta de luxo; quem gosta de miséria é intelectual”
[Joãozinho Trinta, carnavalesco de Nilópolis/RJ, ao ser questionado sobre o contraste
entre o luxo da escola de samba (Beija-Flor) e a pobreza da comunidade]. O nome
da cidade é homenagem a Nilo Peçanha, mulato pobre, filho de padeiro, nascido
em Campos dos Goytacazes/RJ, que se bacharelou em direito, governou o antigo Estado
do Rio de Janeiro e presidiu o Brasil. Afonso Pena morreu antes de terminar o
mandato (1909). Nilo assumiu a presidência da república por ser o Vice-Presidente
(1909-1910). Com o nome dele também há uma avenida na Esplanada do Castelo, centro
da cidade do Rio de Janeiro.
Miséria é o grau máximo da pobreza
material e imaterial, como descrita na literatura (“Os Miseráveis”, Victor
Hugo) e discutida na seara ideológica (“Filosofia da Miséria”, Proudhon versus “A Miséria da Filosofia”, Marx). Durante
trinta anos eu vivi na pobreza. De perto, vi a miséria sem nela viver. Muito trabalho
e estudo desde a infância, múltiplas dificuldades, mas, também, momentos de
prazer, alegria e diversão, ainda que breves. Dessa experiência – e não apenas
dos livros, documentários e vida acadêmica – extraio a minha opinião de cunho sociológico.
O luxo não preocupa o pobre. A casa do pobre, quando
muito, ornamenta-se com o quadro de Jesus e/ou de um guia espírita como o Dr.
Leocádio, imagens de santos, retrato dos avós, calendário. No seu realismo
existencial, pobre luta muito pela sobrevivência, mas também gosta da beleza
nas pessoas e nas coisas. A mulher pobre gosta de se banhar, perfumar-se, pintar
as unhas, arrumar-se, exibir seus dotes físicos e intelectuais. Pobre gosta de
rir, cantar, dançar, contar e ouvir piadas e se divertir. Pobre gosta de estar
com as necessidades materiais satisfeitas, ser proprietário da modesta casa em
que mora, do automóvel de segunda mão, do terreno de dois hectares na zona
rural para criar o alazão, o cachorro, vaca leiteira, galinha, plantar verdura,
legume, feijão, milho, videira, árvore frutífera. Pobre gosta de conforto, manter
a casa limpa, mobiliada, equipada com fogão, geladeira, telefone, televisor, rádio,
rede na varanda.
Pobre quer sua casa provida de água encanada, luz
elétrica, banheiro com chuveiro, vaso sanitário com descarga e rede de esgoto, quintal
com jardim e horta, ou morar em edifício de apartamentos que não seja favela
vertical. Pobre quer suficiência de alimentos, roupas, calçados e remédios; atendimento
atencioso, pronto e eficiente de médicos e hospitais; filhos saudáveis, bem
nutridos, matriculados em escolas com material escolar de boa qualidade e
professores qualificados, dedicados e bem remunerados. Pobre quer facilidade de
crédito e desburocratização para abrir negócio próprio; ampla oportunidade de
emprego, salário que permita digno padrão de vida, empregadores que respeitem o
empregado e obedeçam as regras de direito; meios de transporte que lhe permitam
deslocar-se com segurança de casa para o trabalho e vice-versa. Pobre quer condições
econômicas para: (i) viajar a recreio, inclusive de avião e navio (ii) ir ao
cinema, ao teatro, ao espetáculo artístico (iii) reunir-se no final de semana
com os amigos para conversar, tomar umas e outras enquanto soluciona os
problemas do país, escala a seleção brasileira e explica a melhor tática para
ganhar a copa (iv) tocar flauta, violão, cavaquinho, bandolim, pandeiro, fazer roda
de samba, festa e seresta.
Luxo (ostentação, magnificência) não
contribui para a felicidade do pobre. A sabedoria popular deixa o luxo para o
rico, como sugere a canção do Ataulfo Alves: “Chora doutor, chora/ eu sei que o
medo de ficar pobre lhe apavora/ O senhor tem palacete pra morar/ e eu um
bangalô e um amor/ ah, doutor, ah doutor/ eu só não quero ter a vida do senhor”.
A elite social e econômica generaliza e confunde
pobreza com indigência intelectual e moral. Imagina o pobre ignorante, sujo, promíscuo,
vagabundo, desprovido de senso ético e estético, manobrado e explorado por padres,
pastores evangélicos e políticos oportunistas. A elite intelectual está perto
dessa estrábica visão ao defender o pobre por comiseração, isto quando não o acusa
de fraqueza de vontade, preguiça, passividade cristã retrógrada. Darcy Ribeiro, notável
antropólogo brasileiro, numa entrevista concedida a um canal de televisão, contou
que se surpreendeu e ficou admirado quando a sua acompanhante estrangeira – quiçá
gringa loira (ele não explicou) – empolgou-se com a sensualidade de um vendedor
ambulante pobre e moreno que trabalhava na praia se deslocando pela areia.
O pobre, o intelectual e o rico são seres estruturados
de carne, osso e mente, submetidos às mesmas leis da natureza, todos com os mesmos
atributos naturais: pensamento, sentimento, vontade, linguagem e movimento; com
as mesmas necessidades naturais: ar, água, alimento, abrigo e amor; com a mesma
fisiologia, apesar de alguma diferença na qualidade das substâncias ingeridas e
expelidas. O pobre tem consciência social, moral e espiritual. O menos pobre
discrimina o mais pobre, assim como o negro mais claro discrimina o negro mais
escuro. Para o pobre, riqueza material superior às necessidades e às utilidades
básicas é remota possibilidade, aspiração que a loteria pode concretizar. No entanto,
para o rico, a riqueza material é uma obsessão e opressiva realidade. A
desonestidade do pobre é condenada; a do rico, elogiada. A crença religiosa
escraviza mais o pobre do que o rico. O senso de justiça e o senso ético são mais
agudos no pobre do que no rico. Mais do que o rico, o pobre valoriza a verdade,
a honestidade, a bondade e a piedade (ainda quando não as pratica). Talvez por
isto, Jesus, o Cristo, tenha dito que era mais fácil uma corda passar pelo
buraco da agulha do que um rico entrar no reino de deus. O pobre educa os
filhos dentro dos preceitos éticos e religiosos com mais rigor do que o rico. As
convenções sociais impressionam mais o pobre do que o rico. O pobre aprecia muito
ser visto e respeitado como pessoa e como cidadão.
A cidadania do pobre ampliou-se a partir dos séculos
XVIII (revolução francesa) e XIX (revolução industrial) na Europa e na América.
Contribuíram para essa expansão: o alargamento do espaço da liberdade e da
igualdade, a organização dos trabalhadores em sindicatos, a conquista dos
direitos trabalhistas, a formação de partidos de esquerda, a multiplicação dos
meios de comunicação, a reorientação e o apoio da igreja católica. Os
comerciantes e os industriais também se organizaram. Apegados ao seu capital e
ao seu lucro, eles resistem com firmeza e persistência ao avanço dos direitos
dos trabalhadores e à melhoria do padrão de vida dos pobres. No confronto com
os trabalhadores, os empresários recebem apoio dos poderes do estado. As corporações
da indústria, do comércio, da agricultura, ditam a política econômica e social
aos legisladores, administradores e juízes, o que gera insegurança à classe
trabalhadora e vantagem à classe empresarial.
Máxima dos donos do poder (banqueiros, empresários
urbanos e rurais, barões do império da comunicação): “Para nós, tudo de bom;
para os pobres, as migalhas”.
Máxima da massa popular (pobres e trabalhadores):
“Para nós, bem-estar, dignidade e felicidade; para a elite, o luxo”.
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