quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

LUXO & POBREZA


“Pobre gosta de luxo; quem gosta de miséria é intelectual” [Joãozinho Trinta, carnavalesco de Nilópolis/RJ, ao ser questionado sobre o contraste entre o luxo da escola de samba (Beija-Flor) e a pobreza da comunidade]. O nome da cidade é homenagem a Nilo Peçanha, mulato pobre, filho de padeiro, nascido em Campos dos Goytacazes/RJ, que se bacharelou em direito, governou o antigo Estado do Rio de Janeiro e presidiu o Brasil. Afonso Pena morreu antes de terminar o mandato (1909). Nilo assumiu a presidência da república por ser o Vice-Presidente (1909-1910). Com o nome dele também há uma avenida na Esplanada do Castelo, centro da cidade do Rio de Janeiro.      
Miséria é o grau máximo da pobreza material e imaterial, como descrita na literatura (“Os Miseráveis”, Victor Hugo) e discutida na seara ideológica (“Filosofia da Miséria”, Proudhon versus “A Miséria da Filosofia”, Marx). Durante trinta anos eu vivi na pobreza. De perto, vi a miséria sem nela viver. Muito trabalho e estudo desde a infância, múltiplas dificuldades, mas, também, momentos de prazer, alegria e diversão, ainda que breves. Dessa experiência – e não apenas dos livros, documentários e vida acadêmica – extraio a minha opinião de cunho sociológico.
O luxo não preocupa o pobre. A casa do pobre, quando muito, ornamenta-se com o quadro de Jesus e/ou de um guia espírita como o Dr. Leocádio, imagens de santos, retrato dos avós, calendário. No seu realismo existencial, pobre luta muito pela sobrevivência, mas também gosta da beleza nas pessoas e nas coisas. A mulher pobre gosta de se banhar, perfumar-se, pintar as unhas, arrumar-se, exibir seus dotes físicos e intelectuais. Pobre gosta de rir, cantar, dançar, contar e ouvir piadas e se divertir. Pobre gosta de estar com as necessidades materiais satisfeitas, ser proprietário da modesta casa em que mora, do automóvel de segunda mão, do terreno de dois hectares na zona rural para criar o alazão, o cachorro, vaca leiteira, galinha, plantar verdura, legume, feijão, milho, videira, árvore frutífera. Pobre gosta de conforto, manter a casa limpa, mobiliada, equipada com fogão, geladeira, telefone, televisor, rádio, rede na varanda.
Pobre quer sua casa provida de água encanada, luz elétrica, banheiro com chuveiro, vaso sanitário com descarga e rede de esgoto, quintal com jardim e horta, ou morar em edifício de apartamentos que não seja favela vertical. Pobre quer suficiência de alimentos, roupas, calçados e remédios; atendimento atencioso, pronto e eficiente de médicos e hospitais; filhos saudáveis, bem nutridos, matriculados em escolas com material escolar de boa qualidade e professores qualificados, dedicados e bem remunerados. Pobre quer facilidade de crédito e desburocratização para abrir negócio próprio; ampla oportunidade de emprego, salário que permita digno padrão de vida, empregadores que respeitem o empregado e obedeçam as regras de direito; meios de transporte que lhe permitam deslocar-se com segurança de casa para o trabalho e vice-versa. Pobre quer condições econômicas para: (i) viajar a recreio, inclusive de avião e navio (ii) ir ao cinema, ao teatro, ao espetáculo artístico (iii) reunir-se no final de semana com os amigos para conversar, tomar umas e outras enquanto soluciona os problemas do país, escala a seleção brasileira e explica a melhor tática para ganhar a copa (iv) tocar flauta, violão, cavaquinho, bandolim, pandeiro, fazer roda de samba, festa e seresta.
Luxo (ostentação, magnificência) não contribui para a felicidade do pobre. A sabedoria popular deixa o luxo para o rico, como sugere a canção do Ataulfo Alves: “Chora doutor, chora/ eu sei que o medo de ficar pobre lhe apavora/ O senhor tem palacete pra morar/ e eu um bangalô e um amor/ ah, doutor, ah doutor/ eu só não quero ter a vida do senhor”. 
A elite social e econômica generaliza e confunde pobreza com indigência intelectual e moral. Imagina o pobre ignorante, sujo, promíscuo, vagabundo, desprovido de senso ético e estético, manobrado e explorado por padres, pastores evangélicos e políticos oportunistas. A elite intelectual está perto dessa estrábica visão ao defender o pobre por comiseração, isto quando não o acusa de fraqueza de vontade, preguiça, passividade cristã retrógrada. Darcy Ribeiro, notável antropólogo brasileiro, numa entrevista concedida a um canal de televisão, contou que se surpreendeu e ficou admirado quando a sua acompanhante estrangeira – quiçá gringa loira (ele não explicou) – empolgou-se com a sensualidade de um vendedor ambulante pobre e moreno que trabalhava na praia se deslocando pela areia.
O pobre, o intelectual e o rico são seres estruturados de carne, osso e mente, submetidos às mesmas leis da natureza, todos com os mesmos atributos naturais: pensamento, sentimento, vontade, linguagem e movimento; com as mesmas necessidades naturais: ar, água, alimento, abrigo e amor; com a mesma fisiologia, apesar de alguma diferença na qualidade das substâncias ingeridas e expelidas. O pobre tem consciência social, moral e espiritual. O menos pobre discrimina o mais pobre, assim como o negro mais claro discrimina o negro mais escuro. Para o pobre, riqueza material superior às necessidades e às utilidades básicas é remota possibilidade, aspiração que a loteria pode concretizar. No entanto, para o rico, a riqueza material é uma obsessão e opressiva realidade. A desonestidade do pobre é condenada; a do rico, elogiada. A crença religiosa escraviza mais o pobre do que o rico. O senso de justiça e o senso ético são mais agudos no pobre do que no rico. Mais do que o rico, o pobre valoriza a verdade, a honestidade, a bondade e a piedade (ainda quando não as pratica). Talvez por isto, Jesus, o Cristo, tenha dito que era mais fácil uma corda passar pelo buraco da agulha do que um rico entrar no reino de deus. O pobre educa os filhos dentro dos preceitos éticos e religiosos com mais rigor do que o rico. As convenções sociais impressionam mais o pobre do que o rico. O pobre aprecia muito ser visto e respeitado como pessoa e como cidadão.
A cidadania do pobre ampliou-se a partir dos séculos XVIII (revolução francesa) e XIX (revolução industrial) na Europa e na América. Contribuíram para essa expansão: o alargamento do espaço da liberdade e da igualdade, a organização dos trabalhadores em sindicatos, a conquista dos direitos trabalhistas, a formação de partidos de esquerda, a multiplicação dos meios de comunicação, a reorientação e o apoio da igreja católica. Os comerciantes e os industriais também se organizaram. Apegados ao seu capital e ao seu lucro, eles resistem com firmeza e persistência ao avanço dos direitos dos trabalhadores e à melhoria do padrão de vida dos pobres. No confronto com os trabalhadores, os empresários recebem apoio dos poderes do estado. As corporações da indústria, do comércio, da agricultura, ditam a política econômica e social aos legisladores, administradores e juízes, o que gera insegurança à classe trabalhadora e vantagem à classe empresarial.
Máxima dos donos do poder (banqueiros, empresários urbanos e rurais, barões do império da comunicação): “Para nós, tudo de bom; para os pobres, as migalhas”.   
Máxima da massa popular (pobres e trabalhadores): “Para nós, bem-estar, dignidade e felicidade; para a elite, o luxo”.          

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