terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

INOCÊNCIA

A ausência de culpa caracteriza o estado de inocência no qual a pessoa permanece desde o nascimento até interagir na família e na sociedade e adquirir a noção do bem e do mal, do certo e do errado, do permitido e do proibido, do lícito e do ilícito. Ao praticar intencionalmente o mal, o errado, o proibido, o ilícito, como conceituados e compreendidos no meio em que vive, a pessoa sofre, ou arrisca-se a sofrer, consequências desagradáveis (repulsa, isolamento, punição). Enquanto lhe faltar discernimento e não entender o caráter ilícito da sua conduta, a pessoa é considerada inimputável, ou seja, não se lhe pode, juridicamente, atribuir responsabilidade pelo que faz ou deixa de fazer. A lei brasileira considera inimputáveis também os menores de 18 anos. 
A experiência social e política dos povos europeus secretou a presunção de inocência em favor das pessoas imputáveis assim enunciada: “Todos são inocentes até prova em contrário”. A sua origem histórica fundada no reconhecimento da dignidade da pessoa humana está documentada na Magna Charta Libertatum (1215) e na Petição de Direitos (1628), ambas da Inglaterra, e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), da França. Essa presunção consta como garantia constitucional em países europeus (Alemanha, Áustria, Itália, Bélgica), em países asiáticos (China, Japão, Índia, Israel), em países americanos (Brasil, México, Uruguai, Venezuela); consta também de documentos internacionais como a Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (São José da Costa Rica, 1969). São admitidos direitos naturais à vida, à liberdade, à igualdade, à propriedade, à segurança e de resistência à opressão, que limitam o poder dos governantes.
Produtos da civilização ocidental, a presunção de inocência e o postulado do devido processo jurídico figuram como garantias fundamentais dos cidadãos. Esses dois axiomas da ciência jurídica resultaram da necessidade de: [i] proteger a liberdade e o patrimônio moral e econômico das pessoas [ii] frear abusos cometidos por legisladores, chefes de governo, juízes, promotores, policiais.
Presumir significa conjecturar, supor, cogitar probabilidades. A presunção opõe-se à certeza e paira no estado mental da dúvida e da opinião. A presunção de inocência não significa que o acusado seja de fato inocente e sim que ele deve ser tratado como se fosse inocente. Cuida-se de respeito à dignidade humana e de cautela ante a probabilidade comprovada pela experiência histórica de: (i) falha nos julgamentos humanos (ii) decisões parciais, vingativas e cruéis (iii) gravíssimas consequências para a vida, a saúde, a liberdade e o patrimônio das pessoas, decorrentes de precipitadas, abusivas e injustas atitudes das autoridades públicas.  
No direito comparado, verifica-se que: (i) o limite da presunção de inocência é a sentença penal condenatória independente do seu trânsito em julgado (ii) o julgamento deve ser regular, precedido de todas as cautelas processuais. O devido processo jurídico consiste nessas cautelas e regularidade, nas regras previamente estabelecidas em lei, nas garantias do contraditório, da ampla defesa e do juiz natural. Na sentença penal condenatória o juiz declara o réu culpado e expede o mandado de prisão. A convicção do juiz provém das provas idôneas produzidas na regular instrução processual. A certeza brotada da sentença é provisória, substitui a presunção de inocência até ser examinada na superior instância. Na hipótese de arbitrariedade do julgador, o réu dispõe do habeas corpus para se defender com maior rapidez perante a instância superior.
No direito brasileiro, esse panorama mudou com o advento da Constituição Federal de 1988. O espaço da presunção de inocência foi estendido até o trânsito em julgado da sentença penal. A certeza gerada pela sentença condenatória de primeiro grau tornar-se-á definitiva só depois de esgotados todos os recursos. Enquanto isto não acontecer, o réu, graças à garantia constitucional, não pode ser considerado culpado; logo, não pode ser privado da liberdade, pois quem não é culpado não deve ser punido. A pena estabelecida na sentença deve ser cumprida só depois de não restar dúvida sobre a regularidade do processo e a culpa do réu. Essa dúvida metódica é definitivamente espancada depois do derradeiro grau de jurisdição.   
O Supremo Tribunal Federal (STF), em 2016, contornou essa garantia constitucional e reduziu o espaço da presunção de inocência. Agora, a garantia vigora só até a decisão de segundo grau que condenar o réu. A partir daí, prevalece o interesse da sociedade na punição sobre o interesse do condenado na absolvição. A pena é executada enquanto o condenado discute a questão de direito nas instâncias especial e extraordinária. Na hipótese de a decisão nas instâncias ordinárias ter sido teratológica, ou simplesmente contrária à Constituição, o réu poderá, mediante habeas corpus, obter a suspensão da pena até o julgamento final dos recursos.
Sem poder constituinte legítimo (cujo titular é o povo) o STF restringiu o alcance de norma constitucional de ampla extensão categorizada como cláusula pétrea da Constituição. Segundo os votos vencedores naquela sessão (Fev/2016), a presunção vigora só até a decisão de segundo grau. Segundo os votos vencidos, a presunção vigora até o trânsito em julgado da sentença (quando exauridos todos os recursos).
Compreensível a preocupação com a impunidade dos criminosos. A demora em prestar tutela jurisdicional poderá causar a extinção da punibilidade pela prescrição. Todavia, os abusos verificados nos episódios do “mensalão” e da “lava jato” (2005/2018) mostraram à nação brasileira o acerto do legislador constituinte originário e legítimo (1987/1988) ao estender a presunção de inocência até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. A imediata execução da pena, antes de a sentença transitar em julgado, tornou-se grave e constrangedora ameaça aos direitos dos cidadãos brasileiros depois daqueles censuráveis episódios.
A confiança do povo na honestidade, imparcialidade e serenidade dos juízes baixou de modo vertiginoso. As decisões judiciais tendenciosas, vertendo ódio, as ginásticas cerebrinas dos agentes do ministério público e dos juízes motivadas por preferências políticas partidárias, revelaram graves defeitos de caráter. A segurança dos jurisdicionados foi negligenciada. Haverá alguma segurança ainda, se antes da execução, os decretos condenatórios forem examinados pelos tribunais superiores (STJ e STF). Fica mal, muito mal, o Poder Judiciário coonestar patifarias. Melhor, muito melhor, para a nação brasileira, o risco da prescrição do que a prisão de pessoas inocentes. 

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