- Deixemos de lado as provincianas questões sobre o
frontal e o retal e retomemos a nossa discussão. Acho que respondi ao teu
questionamento sobre a maturidade das nações.
- Sim, Eduardo, embora me pareça inadequada a
terminologia usada por você. Mas, deixe pra lá. Você ainda me deve a explicação
sobre a nação brasileira não estar madura para
a democracia. Você fala como se a nação estivesse madura para outras coisas
como, por exemplo, os desafios econômicos e ecológicos. Você falou também no controle
da sociedade civil pelo Estado, como se Estado e Sociedade fossem coisas
diferentes.
- Há divergências acadêmicas: de um lado os que
defendem a unidade: Estado = Sociedade; e de outro, os que defendem a
distinção: Estado # Sociedade. Ferdinand Tönnies, o sociólogo alemão que citei
antes do jogo, distingue comunidade e
sociedade. A nação se encaixa na
primeira, onde os membros estão vinculados mutuamente de maneira organizada e
por vontade própria, enquanto na segunda, os membros estão divididos. Na
comunidade há bens cuja posse e gozo são comuns; na sociedade há mercado, troca
de dinheiro (e de balas, acrescento). Penso que a divisão no Estado é evidente:
de um lado, os governantes com o monopólio da força, como diria o sociólogo
alemão Max Weber, e de outro, os governados com o dever de submissão. Pairando
sobre esses dois pólos há um sentimento coletivo de unidade nacional. Segundo a
visão de mundo de cada pensador, o Estado é definido ora como organização do
poder político na sociedade; ora como nação politicamente organizada; ora como
aparelho de dominação de uma classe sobre outra na sociedade; e assim por
diante. Quanto à imaturidade da nação brasileira para a democracia, os números falam por si. Dos 193 anos como nação
independente, 113 anos foram de autocracia e 80 de democracia. O período
democrático mais longo foi o de 1895
a 1930, interrompido pela revolução civil; o mais curto
foi o de 1946 a
1963, interrompido pelo golpe civil/militar de 1964. No período de 1988 a 2015, a direita tenta
golpear. Quanto ao preparo ou despreparo da nação brasileira para enfrentar
outros desafios é assunto mais amplo e complexo para ser resumido numa conversa
informal.
- Pois então, vamos nos ocupar um pouquinho mais do
aspecto político. Noto que durante a república os períodos democráticos foram mais
longos do que os autocráticos, a indicar que a falta de maturidade não é da
nação e sim de parcela do povo que derruba governos legítimos.
- Márcio, meu estimado hóspede e amigo, a parcela do
povo que você menciona não é sempre a mesma; ora é verde, ora é azul, ora é
vermelha, se me permite ilustrar o pensamento com essas cores. Considerado como
um só corpo social, o povo nunca tomou a iniciativa das revoluções brasileiras.
Eclodida a revolução, a comunidade nacional fica dividida em revolucionários, contra-revolucionários
e espectadores neutros. A monarquia caiu por um golpe desferido pelos militares
em 1889, para espanto das pessoas comuns. A ruptura da primeira república em
1930 resultou do confronto entre lideranças políticas. Os vícios no processo
eleitoral foram o agente catalisador. A segunda república, constituída em 1946,
foi golpeada em 1964 por lideranças civis e militares posicionadas ao lado dos
EUA na guerra fria em defesa do
sistema econômico capitalista. A ameaça comunista foi o agente catalisador. A
terceira república, constituída em 1988, está ameaçada pela relação de ódio e
intolerância entre lideranças políticas opostas. Destarte, consideradas as
facções, verifica-se que a imaturidade é da nação, “sim senhor”.
- Pensando bem, Eduardo, você tem razão. Veja: se o
povo fosse maduro, o voto seria um direito e não uma obrigação. Só a
imaturidade e a falta de consciência política do povo justificam essa
obrigatoriedade. O legislador constatou que seria mínimo o comparecimento às
urnas se o voto fosse facultativo. Por outro lado, a virulenta reação dos
vencidos no pleito eleitoral, o ódio ao vencedor, o ímpeto de destruí-lo, o
boicote ao governo por mero despeito, indicam indigência moral e espiritual e
ausência de espírito democrático.
- De fato, Márcio, além da pouca idade e da prática
eleitoral desvirtuada, há outros ingredientes na falta de maturidade da nação
brasileira, tais como: (1) educação deficiente e negligenciada; (2)
licenciosidade dos costumes; (3) corrupção, esperteza malandra, mentalidade do
jeitinho, a propina ao guarda ou ao fiscal para evitar a multa, as pequenas e
freqüentes estocadas na lei; (4) caráter gelatinoso, amoralidade que inspirou
Mário de Andrade a criar Macunaíma; (5)
consciência política frágil, tradição oligárquica, domínio privado do bem público,
nepotismo; (6) condescendência com as safadezas dos poderosos, comodismo; (7) mentalidade
colonizada, imprensa a serviço do estrangeiro. Esses fatores mostram a
imaturidade do povo brasileiro e justificam a frase cunhada por Charles de
Gaulle: “O Brasil não é um país sério”.
- Poxa, Eduardo, os dedos das mãos foram poucos para
você flexionar durante a enumeração dos ingredientes! Pelo que acaba de dizer,
faltam atributos culturais, éticos e espirituais que qualificariam de madura a
nação brasileira. Quando, no século XX, Pelé afirmou que “brasileiro não sabe
votar”, caíram de pau em cima dele. No entanto, ele disse de forma sintética o
que você disse agora de forma analítica. O eleitor brasileiro sabe ir à urna depositar
o voto, mas não sabe escolher bons representantes. Há eleitor que troca o voto
por dinheiro, por tênis, por quinquilharias e promessas de emprego. Os
candidatos postos pelos partidos são, na maioria, desonestos, monturo da
sociedade. O Congresso Nacional, as assembléias legislativas e as câmaras
municipais estão repletos de pilantras que lá chegaram graças ao voto popular.
A recente crônica policial do nosso país evidenciou essa triste e vergonhosa
realidade.
- Realmente, Márcio, os partidos políticos são usinas
de corrupção. O sistema eleitoral proporcional para escolha de deputados e vereadores pode
ser interessante do ponto de vista acadêmico e ideológico, mas a sua aplicação entre
nós tem sido uma desgraça! Na mesma eleição, candidato com 500 votos é eleito e
candidato com 50 mil votos não é eleito! Suplente de senador, sem voto algum,
assume o mandato! Como essas e outras distorções foram inseridas na ordem
jurídica?
- Artifício do legislador, Eduardo, sob pretexto de
garantir representação à minoria, como se a democracia não fosse o governo da
maioria. O artificioso sistema eleitoral referido por você dá muita força às
quadrilhas de bandidos e oportunistas acoitados nos partidos políticos. O voto
devia ser majoritário também para eleição de deputados e vereadores, pois o
eleitor brasileiro vota em pessoas naturais e não em partidos. Assim
como o país tem senadores da direita, do centro e da esquerda do espectro
político eleitos pelo voto majoritário, teríamos também deputados e vereadores da
direita, do centro e da esquerda eleitos pelo voto majoritário. Quem exerce o
mandato político é a pessoa natural e não a pessoa jurídica. A candidatura
avulsa faz-se necessária a uma nação onde pessoas de bem que pretendam
representar o povo são obrigadas a ingressar nessas pocilgas que são os
partidos políticos.
- As tuas palavras Márcio, evocam a imensa roubalheira
nestes 27 anos de governo civil. Apesar disto, a república brasileira controlou
a inflação, pagou a dívida com o FMI, ajudou outras nações e ainda se mantém solvente.
Este é o verdadeiro milagre brasileiro! A honra,
valor acalentado pelo militar, é considerada coisa de otário pelo político
brasileiro e coisa de pouca valia pelo eleitor. A política partidária é muito
suja em nosso país. Toda essa podridão moral e espiritual evidencia a
imaturidade da qual falei.
- Sei não, Eduardo. A podridão moral me parece mais acentuada
nas camadas média e alta da sociedade. Isto vem atestado pelos escândalos
financeiros e pelo baixo nível das manifestações nas ruas, nas redes sociais,
nas emissoras de TV. Quanto ao aspecto espiritual, prefiro falar de atraso e
não de podridão. Espiritualmente, a humanidade está na Idade da Pedra.
- Rapaziada! O jantar está servido.
- “Rapaziada”? Dois velhos como nós? A Leonora está de
brincadeira!
- Ainda não somos velhos, Eduardo. O nosso caminhar está
um pouco lento, sentimos dores nas juntas, enxergamos e ouvimos com alguma
dificuldade, a voz enfraqueceu, a gula aumentou, o apetite sexual e a paciência
diminuíram, a farmácia é nossa parceira, repetimos contos, às vezes há um hiato
entre o pensamento e a palavra, mas, apesar disto, ainda não chegamos à casa
dos 90 anos de idade. Portanto, somos apenas homens maduros.
- A valer essa tua otimista expectativa, meu prezado e
maduro amigo, ainda dispomos de algum tempo antes de nos desprendermos da
árvore da vida. Então, vamos alimentar a carcaça, pois conforme o ditado
popular, saco vazio não para em pé.
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