Fraudar é enganar alguém em proveito próprio ou alheio, mediante
ardil. Abusa-se da necessidade, da ignorância, da debilidade mental, da
credulidade, da inexperiência, da simplicidade, da ambição e dos sonhos de
adultos, adolescentes e crianças. Os enganadores alteram peso, medida,
quantidade e qualidade das coisas; falsificam marcas, moedas, documentos e
objetos de arte entre outros; simulam paixões, virgindade, gravidez e doenças;
alienam, desviam, destroem ou danificam seus bens para não pagar os credores.
“Conhecerás a verdade e a verdade
vos libertará” (João, 8: 32). Conhecerás a fraude e a fraude vos escravizará.
Grande parcela da humanidade é vítima de fraudes milenares no campo religioso. Os
crentes aceitam, sem discutir, a autenticidade de “escrituras sagradas” e a
interpretação que lhes é dada pela classe sacerdotal. A fé prevalece sobre a
crítica racional. A autoridade eclesiástica sobrepõe-se à liberdade dos fiéis
reunindo-os em um rebanho. Isto facilita a manipulação dos textos considerados
sagrados e assegura ao clero o duplo poder: espiritual e secular, tal como
ocorreu na Europa medieval e ainda ocorre em países islâmicos. Autoridades
religiosas fizeram supressões, substituições e adições na Bíblia, segundo os
seus interesses doutrinários, teocráticos e financeiros. Ao perceber o caráter
mistificador da “escritura sagrada”, Albert Einstein definiu-a como coleção de
contos da carochinha.
Thomas Hobbes, filósofo inglês,
ao tratar do Estado Cristão, na terceira parte do seu livro Leviatã, publicado
em 1651, reproduz os versículos 21 e 45, do capítulo 14, do livro I, de Esdras,
contido no Antigo Testamento: “Tua lei
foi queimada, portanto, ninguém conhece as coisas que fizeste, nem as obras que
estão para acontecer. Mas, se encontro graça perante ti, envia o Espírito Santo
até mim e escreverei tudo que foi feito no mundo desde o inicio, todas as
coisas que foram escritas na lei, para que os homens possam encontrar teu
caminho (...)”. Dito isto, Esdras prossegue: (...) “e veio a acontecer que depois de cumpridos 40 dias, o Altíssimo falou e
disse: o primeiro que escreveste publica-o abertamente para que os dignos e
indignos possam lê-lo, mas guarda os últimos 70 para que possas entregá-los
apenas àqueles de entre o povo que sejam sábios”.
Referindo-se à autoridade dos
textos sagrados e com esteio nos citados versículos, Hobbes afirma que os cinco
primeiros livros do Antigo Testamento (Pentateuco)
receberam a forma atual pelas mãos do escriba e sacerdote Esdras, no quarto
século antes de Cristo, durante o exílio dos judeus na Babilônia. O capítulo 14
por ele reproduzido não consta das edições em português das bíblias católica e
protestante que tenho em
mãos. Os papiros originais da lei judaica conhecida como Tora e Pentateuco – se é que existiram –
converteram-se em cinzas quando o templo de Jerusalém foi destruído e queimado
pelo exército de Nabucodonosor, episódio que antecedeu a remoção dos judeus da
Palestina para a Babilônia. Durante o exílio coletivo, Esdras se propôs a elaborar
novamente a “lei” queimada invocando o auxílio do espírito santo, ajudado na hercúlea
tarefa por sacerdotes judeus e fundado em provável tradição oral. O propósito
era domesticar o povo judeu por ele criticado como de cabeça dura,
desobediente, pérfido, cruel, sensual, mentiroso, belicoso. Para atemorizar os
judeus, afastá-los do politeísmo e da miscigenação e colocá-los no trilho monoteísta,
Esdras criou um deus diabólico, belicoso, vingativo, colérico, cruel, genocida,
à semelhança dos judeus criticados. Batizou-o de Javé. Na escritura que
elaborou, Esdras incluiu um pacto de vassalagem entre Javé e lideranças do povo
hebreu. A confissão de Esdras revela que o Pentateuco, tal como conhecemos
hoje, não é o texto original – se é que houve um texto original anterior. As
igrejas cristãs passam aos crentes a falsa idéia de que a Bíblia existe há
quatro mil anos e foi ditada por deus ou elaborada sob inspiração divina.
Ante a impostura de Esdras –
ainda que rodeada de boas intenções – a existência real de Moisés é incerta.
Esse personagem não consta das fontes históricas da época, mas tão somente da
fantasiosa narrativa de Esdras: bebê hebreu colocado pela mãe numa cesta
lançada ao rio, encontrado e criado por uma princesa egípcia. Bom enredo para um
filme. O padrão fantasioso é comum aos dois “testamentos”: o antigo e o novo. A
existência real de Jesus também é duvidosa. A mãe virgem engravidada por obra
do espírito santo é mera reprodução de lenda pagã. Fora dos evangelhos, a única
referência a Jesus é feita por Flavio Josefo (37 a 101 d.C.), historiador apologista,
judeu erudito que mudou de lado e adotou o nome latino e a cidadania romana.
Josefo menciona Jesus sem descrever a aparência física; em poucas linhas, diz
que Jesus era mais do que homem porque autor de feitos extraordinários, mestre
de pessoas que buscavam a verdade, o Cristo denunciado por autoridades judias,
condenado por Pilatos e que morreu na cruz, mas ressuscitou no terceiro dia. (Antigüedades Judias. Madri.
Akal/clássica, 1997, tomo II, livro XVIII, página 1089, parágrafo 63).
No torvelinho do primeiro século
da era cristã, na Palestina e na Roma pagã, um judeu ou um romano jamais
trataria de “cristo” um gentio (estrangeiro
de inferior categoria) como Jesus; nunca admitiria verdade alguma provinda de
um homem pobre, oriundo da Galiléia; não lhe reconheceria maestria e nem
afirmaria que ele ressuscitara depois de morto na cruz. Josefo era ainda jovem
quando Paulo começou a escrever as epístolas por volta dos anos 60. Os
apóstolos começaram a ditar os evangelhos por volta dos anos 80. Provavelmente,
a referência a Jesus foi interpolada pela igreja visando a reforçar a crença na
historicidade e no poder divino do profeta. Firma-se ainda mais essa
probabilidade diante da evidente coloração cristã do texto de Josefo, bem
ajustado ao Credo, prece fundamental da igreja cristã elaborada nos anos 325 e
381, durante os concílios de Nicea e Constantinopla, respectivamente. O Credo é a profissão de fé do
cristianismo contrária à profissão de fé judaica.
Assim como Sócrates, filósofo
grego, Jesus também nada deixou por escrito. Supondo-se alguma verdade
histórica nos evangelhos, é possível admitir que os apóstolos da primeira hora,
ou seja, recrutados diretamente por Jesus, tenham ditado a escribas as suas
versões sobre a vida e a obra do profeta. Os apóstolos eram pobres e analfabetos,
salvo, talvez, Mateus (Levi) coletor de impostos. Raras pessoas sabiam ler e
escrever. Havia a classe especial dos escribas e neles os iletrados deviam
confiar. Lucas e Paulo eram letrados, mas não conheceram Jesus. Paulo era
fariseu, instruído na escritura judaica, policial a serviço do Sinédrio
(tribunal judeu). Perseguia os cristãos. Depois, juntou-se a eles e disputou a
liderança do grupo com Pedro. Inteligência cultivada, esperto e feio como o
capeta, Paulo levou vantagem sobre o humilde pescador. Encarregou-se de
difundir a doutrina cristã fora da Palestina para não ser preso e julgado pelo
Sinédrio por crime de deserção. Fundou algumas igrejas. Moldou a suposta mensagem
oral de Jesus à cultura farisaica. Estabeleceu preceitos e procedimentos
formais e se distanciou dos ensinamentos mais simples atribuídos ao profeta. Assim,
Paulo fundou a igreja paulina,
qualificada indevidamente de cristã
pelos padres.
Ao verter os evangelhos do grego
para o latim e organizar o chamado Novo
Testamento no século IV da era cristã (301 a 400), Jerônimo,
sacerdote cristão, selecionou os textos atribuídos a Mateus e João e desprezou
os demais alegando autenticidade duvidosa. Os evangelhos excluídos foram
considerados apócrifos e incompatíveis com os dogmas que a igreja pretendia
consolidar. Essa coletânea organizada por Jerônimo compõe-se de: (1) dois
textos atribuídos a Mateus e João, apóstolos da primeira hora; (2) dois textos
de Marcos e Lucas; ambos não conheceram Jesus; (3) narrativa feita por Lucas
sobre os atos dos apóstolos posteriores à morte do profeta; (4) cartas ditadas
pelos apóstolos, algumas escritas por Paulo de próprio punho; (5) texto
profético denominado Apocalipse, atribuído a João.
Esse material foi produzido mais de 60 anos após a crucificação do profeta e organizado mais de 300 anos depois, interregno suficiente para esquecer muitos fatos e inventar outros tantos. Os mitos surgem paulatinamente na fluência do tempo, mediante repetições e acréscimos constantes.
Esse material foi produzido mais de 60 anos após a crucificação do profeta e organizado mais de 300 anos depois, interregno suficiente para esquecer muitos fatos e inventar outros tantos. Os mitos surgem paulatinamente na fluência do tempo, mediante repetições e acréscimos constantes.
Quando, a partir do século XVIII, a liberdade
ampliou-se na Europa e na América, os mistérios que cercavam o “sagrado” foram
se desvelando. A partir do século XX, houve uma pletora de livros, filmes,
artigos, documentários, sobre temas religiosos e esotéricos que colocaram em
xeque as versões exotéricas tradicionais. Com o propósito de sobreviver, instituições
tradicionais defendem o seu credo ao mesmo tempo em que tentam se amoldar aos
tempos modernos e, desse modo, manter o rebanho de crentes.
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