quinta-feira, 11 de junho de 2015

FRAUDES ECLESIÁSTICAS



Fraudar é enganar alguém em proveito próprio ou alheio, mediante ardil. Abusa-se da necessidade, da ignorância, da debilidade mental, da credulidade, da inexperiência, da simplicidade, da ambição e dos sonhos de adultos, adolescentes e crianças. Os enganadores alteram peso, medida, quantidade e qualidade das coisas; falsificam marcas, moedas, documentos e objetos de arte entre outros; simulam paixões, virgindade, gravidez e doenças; alienam, desviam, destroem ou danificam seus bens para não pagar os credores.  
“Conhecerás a verdade e a verdade vos libertará” (João, 8: 32). Conhecerás a fraude e a fraude vos escravizará. Grande parcela da humanidade é vítima de fraudes milenares no campo religioso. Os crentes aceitam, sem discutir, a autenticidade de “escrituras sagradas” e a interpretação que lhes é dada pela classe sacerdotal. A fé prevalece sobre a crítica racional. A autoridade eclesiástica sobrepõe-se à liberdade dos fiéis reunindo-os em um rebanho. Isto facilita a manipulação dos textos considerados sagrados e assegura ao clero o duplo poder: espiritual e secular, tal como ocorreu na Europa medieval e ainda ocorre em países islâmicos. Autoridades religiosas fizeram supressões, substituições e adições na Bíblia, segundo os seus interesses doutrinários, teocráticos e financeiros. Ao perceber o caráter mistificador da “escritura sagrada”, Albert Einstein definiu-a como coleção de contos da carochinha.
Thomas Hobbes, filósofo inglês, ao tratar do Estado Cristão, na terceira parte do seu livro Leviatã, publicado em 1651, reproduz os versículos 21 e 45, do capítulo 14, do livro I, de Esdras, contido no Antigo Testamento: “Tua lei foi queimada, portanto, ninguém conhece as coisas que fizeste, nem as obras que estão para acontecer. Mas, se encontro graça perante ti, envia o Espírito Santo até mim e escreverei tudo que foi feito no mundo desde o inicio, todas as coisas que foram escritas na lei, para que os homens possam encontrar teu caminho (...)”. Dito isto, Esdras prossegue: (...) “e veio a acontecer que depois de cumpridos 40 dias, o Altíssimo falou e disse: o primeiro que escreveste publica-o abertamente para que os dignos e indignos possam lê-lo, mas guarda os últimos 70 para que possas entregá-los apenas àqueles de entre o povo que sejam sábios”.
Referindo-se à autoridade dos textos sagrados e com esteio nos citados versículos, Hobbes afirma que os cinco primeiros livros do Antigo Testamento (Pentateuco) receberam a forma atual pelas mãos do escriba e sacerdote Esdras, no quarto século antes de Cristo, durante o exílio dos judeus na Babilônia. O capítulo 14 por ele reproduzido não consta das edições em português das bíblias católica e protestante que tenho em mãos. Os papiros originais da lei judaica conhecida como Tora e Pentateuco – se é que existiram – converteram-se em cinzas quando o templo de Jerusalém foi destruído e queimado pelo exército de Nabucodonosor, episódio que antecedeu a remoção dos judeus da Palestina para a Babilônia. Durante o exílio coletivo, Esdras se propôs a elaborar novamente a “lei” queimada invocando o auxílio do espírito santo, ajudado na hercúlea tarefa por sacerdotes judeus e fundado em provável tradição oral. O propósito era domesticar o povo judeu por ele criticado como de cabeça dura, desobediente, pérfido, cruel, sensual, mentiroso, belicoso. Para atemorizar os judeus, afastá-los do politeísmo e da miscigenação e colocá-los no trilho monoteísta, Esdras criou um deus diabólico, belicoso, vingativo, colérico, cruel, genocida, à semelhança dos judeus criticados. Batizou-o de Javé. Na escritura que elaborou, Esdras incluiu um pacto de vassalagem entre Javé e lideranças do povo hebreu. A confissão de Esdras revela que o Pentateuco, tal como conhecemos hoje, não é o texto original – se é que houve um texto original anterior. As igrejas cristãs passam aos crentes a falsa idéia de que a Bíblia existe há quatro mil anos e foi ditada por deus ou elaborada sob inspiração divina.
Ante a impostura de Esdras – ainda que rodeada de boas intenções – a existência real de Moisés é incerta. Esse personagem não consta das fontes históricas da época, mas tão somente da fantasiosa narrativa de Esdras: bebê hebreu colocado pela mãe numa cesta lançada ao rio, encontrado e criado por uma princesa egípcia. Bom enredo para um filme. O padrão fantasioso é comum aos dois “testamentos”: o antigo e o novo. A existência real de Jesus também é duvidosa. A mãe virgem engravidada por obra do espírito santo é mera reprodução de lenda pagã. Fora dos evangelhos, a única referência a Jesus é feita por Flavio Josefo (37 a 101 d.C.), historiador apologista, judeu erudito que mudou de lado e adotou o nome latino e a cidadania romana. Josefo menciona Jesus sem descrever a aparência física; em poucas linhas, diz que Jesus era mais do que homem porque autor de feitos extraordinários, mestre de pessoas que buscavam a verdade, o Cristo denunciado por autoridades judias, condenado por Pilatos e que morreu na cruz, mas ressuscitou no terceiro dia. (Antigüedades Judias. Madri. Akal/clássica, 1997, tomo II, livro XVIII, página 1089, parágrafo 63).       
No torvelinho do primeiro século da era cristã, na Palestina e na Roma pagã, um judeu ou um romano jamais trataria de “cristo” um gentio (estrangeiro de inferior categoria) como Jesus; nunca admitiria verdade alguma provinda de um homem pobre, oriundo da Galiléia; não lhe reconheceria maestria e nem afirmaria que ele ressuscitara depois de morto na cruz. Josefo era ainda jovem quando Paulo começou a escrever as epístolas por volta dos anos 60. Os apóstolos começaram a ditar os evangelhos por volta dos anos 80. Provavelmente, a referência a Jesus foi interpolada pela igreja visando a reforçar a crença na historicidade e no poder divino do profeta. Firma-se ainda mais essa probabilidade diante da evidente coloração cristã do texto de Josefo, bem ajustado ao Credo, prece fundamental da igreja cristã elaborada nos anos 325 e 381, durante os concílios de Nicea e Constantinopla, respectivamente. O Credo é a profissão de fé do cristianismo contrária à profissão de fé judaica.
Assim como Sócrates, filósofo grego, Jesus também nada deixou por escrito. Supondo-se alguma verdade histórica nos evangelhos, é possível admitir que os apóstolos da primeira hora, ou seja, recrutados diretamente por Jesus, tenham ditado a escribas as suas versões sobre a vida e a obra do profeta. Os apóstolos eram pobres e analfabetos, salvo, talvez, Mateus (Levi) coletor de impostos. Raras pessoas sabiam ler e escrever. Havia a classe especial dos escribas e neles os iletrados deviam confiar. Lucas e Paulo eram letrados, mas não conheceram Jesus. Paulo era fariseu, instruído na escritura judaica, policial a serviço do Sinédrio (tribunal judeu). Perseguia os cristãos. Depois, juntou-se a eles e disputou a liderança do grupo com Pedro. Inteligência cultivada, esperto e feio como o capeta, Paulo levou vantagem sobre o humilde pescador. Encarregou-se de difundir a doutrina cristã fora da Palestina para não ser preso e julgado pelo Sinédrio por crime de deserção. Fundou algumas igrejas. Moldou a suposta mensagem oral de Jesus à cultura farisaica. Estabeleceu preceitos e procedimentos formais e se distanciou dos ensinamentos mais simples atribuídos ao profeta. Assim, Paulo fundou a igreja paulina, qualificada indevidamente de cristã pelos padres.
Ao verter os evangelhos do grego para o latim e organizar o chamado Novo Testamento no século IV da era cristã (301 a 400), Jerônimo, sacerdote cristão, selecionou os textos atribuídos a Mateus e João e desprezou os demais alegando autenticidade duvidosa. Os evangelhos excluídos foram considerados apócrifos e incompatíveis com os dogmas que a igreja pretendia consolidar. Essa coletânea organizada por Jerônimo compõe-se de: (1) dois textos atribuídos a Mateus e João, apóstolos da primeira hora; (2) dois textos de Marcos e Lucas; ambos não conheceram Jesus; (3) narrativa feita por Lucas sobre os atos dos apóstolos posteriores à morte do profeta; (4) cartas ditadas pelos apóstolos, algumas escritas por Paulo de próprio punho; (5) texto profético denominado Apocalipse, atribuído a João. 
Esse material foi produzido mais de 60 anos após a crucificação do profeta e organizado mais de 300 anos depois, interregno suficiente para esquecer muitos fatos e inventar outros tantos. Os mitos surgem paulatinamente na fluência do tempo, mediante repetições e acréscimos constantes.  
Quando, a partir do século XVIII, a liberdade ampliou-se na Europa e na América, os mistérios que cercavam o “sagrado” foram se desvelando. A partir do século XX, houve uma pletora de livros, filmes, artigos, documentários, sobre temas religiosos e esotéricos que colocaram em xeque as versões exotéricas tradicionais. Com o propósito de sobreviver, instituições tradicionais defendem o seu credo ao mesmo tempo em que tentam se amoldar aos tempos modernos e, desse modo, manter o rebanho de crentes.

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