sexta-feira, 15 de maio de 2015

SABATINA



Vai longe o tempo em que os conhecimentos transmitidos durante a semana eram recapitulados ou aferidos aos sábados. Essa técnica de ensino e aprendizagem era denominada sabatina. Na terça-feira (12/05/2015) o sulista (RS+SC+PR) Luiz Edson Fachin, doutor, professor, advogado, foi sabatinado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado (CCJ) como candidato a uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF) e aprovado com 20 votos a favor e 7 contra a nomeação. A decisão final cabe ao plenário do Senado. Se a escolha não for aprovada pela maioria absoluta do Senado, a Presidente da República terá de indicar outro nome. 

Essa argüição pública apelidada de sabatina era breve, mera satisfação burocrática da norma constitucional. A argüição deste mês de maio foi diferente; durou quase 12 horas; massacre desumano promovido por senadores ansiosos para se exibirem diante das câmeras de TV e apresentarem questionamentos. Questões de mérito foram levantadas como se fossem preliminares prejudiciais. Questões já decididas em sessão anterior foram renovadas. Visível a intenção de tumultuar e retardar o início da argüição. No decorrer da sabatina, perguntas eram repetidas inúmeras vezes. O tempo de cinco minutos para cada senador era extrapolado por figurões em frontal desrespeito às regras estabelecidas e ao direito dos demais colegas que aguardavam a vez de se pronunciar por ordem de inscrição.

Favorável à aprovação do candidato, o relator, filiado ao PSDB, afirmou que o partido o havia liberado. Por via indireta, revelou a existência de orientação partidária para reprovar a escolha feita pela Presidente da República. Pouco importava a qualificação do candidato. O importante era desmoralizar a indicação feita pela presidente. Oposicionistas favoráveis à indicação foram substituídos na CCJ. Tratava-se, pois, de uma questão politiqueira, brotada da mais sórdida maneira de se exercer mandato político. Essa politicagem não é apanágio da oposição atual e sim enraizada nos costumes políticos brasileiros.  

Diante da cultura do interlocutor, há pessoas que se intimidam, outras que se ofendem e outras que apenas se admiram. Os examinadores, embora inteligentes, estavam aquém da cultura do sabatinado. A estrutura moral do sabatinado, reforçada por sua fé religiosa, também era superior a de alguns senadores, principalmente dos que mantêm depósito em dinheiro nos paraísos fiscais e os indiciados em inquéritos policiais. Os títulos de doutor e professor universitário não são decisivos para o exercício da magistratura. Lição da experiência forense e acadêmica: ser bom professor não significa ser bom juiz; ser bom juiz não significa ser bom professor.

O calcanhar de Aquiles nos concursos públicos de provas e títulos está na falta de condições para averiguar a personalidade do candidato. Os questionamentos visam primordialmente o saber do candidato; o proceder fica na penumbra. Exige-se atestado de boa conduta passado por pessoas representativas e certidões negativas dos registros policiais e judiciários. Estes documentos são insuficientes para aferir as características pessoais necessárias a quem vai julgar o próximo. A conduta criminosa ou escandalosa de alguns juízes bem demonstra tal insuficiência. A argüição promovida pelo Senado poderia preencher essa lacuna se realizada com seriedade e espírito público. O legislador constituinte foi previdente ao exigir a argüição pública do candidato ao cargo de juiz do STF, mas nem todos os senadores estão à altura dessa relevante missão. 

Na recente argüição de maio, os senadores seguiram a boa trilha, mas o espírito politiqueiro maculou o trabalho. Insistiam na questão da advocacia simultânea, pública e privada, quando o candidato estava bem amparado na lei, no decreto que o nomeou e na declaração da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O sabatinado vacilou e não foi convincente na questão da prevalência da lei federal que dispõe sobre a OAB e o estatuto da advocacia. Foi reticente, sem clara definição sobre o conflito com a Constituição do Estado do Paraná. O argumento da autonomia dos Estados membros da federação abalou o sabatinado, que não soube defender a supremacia da lei federal que regula dispositivo da Constituição da República. O legislador paranaense amoldou a Constituição do Estado à ordem jurídica nacional por reconhecer aquela supremacia. Nada havia de ilegal e imoral na advocacia do candidato. Inexistia motivo para titubear. Esta insegurança demonstrada pelo sabatinado não o recomenda para o cargo. 

Segundo a prova documental, o candidato satisfaz os requisitos de notável saber jurídico e reputação ilibada exigidos para o cargo de juiz do STF. Entretanto, da prova oral não foi possível notar um saber no sentido de um conhecimento prudente e extraordinário (sabedoria) acima da média dos profissionais do direito com mestrado e doutorado; notou-se um conhecimento jurídico ordinário (ciência). Além disto, como se depreende da crítica acima, o sabatinado não satisfaz o requisito vocacional exigível pelo bom senso. Reputação é fato externo, provém do bom ou mau conceito que a sociedade faz de determinada pessoa. Vocação é fato interno, chamamento da alma para certo aspecto da vida social; propensão da personalidade anímica para certa atividade artística, científica, religiosa; inclinação para um modo de ser e estar no mundo. O elemento vocacional é relevante por refletir a disposição de ânimo do sujeito. No juiz, essa disposição é de suma importância para os jurisdicionados, pois cabe a ele, na função judicante, decidir sobre a liberdade e os bens das pessoas nos casos submetidos à sua apreciação.

O problema não está só nas respostas do sabatinado, mas sim também na atitude fugidia. O modo como ele procurava agradar aos examinadores e a forma como evitava respostas diretas revelavam esperteza censurável. Esse tipo de conduta é compreensível nos parlamentares e governantes, tendo em vista a realidade caleidoscópica na qual atuam, porém, inadmissível no juiz, cuja função não é a de agradar e sim a de fazer justiça no devido processo jurídico. A função judicante exige posições firmes, claras e, no que tange aos princípios, intransigentes. A aplicação das normas admite alguma flexibilidade ante as peculiaridades de cada caso concreto, porém, não se confunde com flacidez e encontra limite intransponível nos direitos fundamentais.      

Para a sociedade, é importante saber a opinião de quem irá julgá-la. O sabatinado afirmava franqueza de alma, contudo, saiu pela tangente em várias questões. Exemplos: (1) Maioridade penal. Evidente que é matéria a ser discutida no Congresso Nacional, porém o examinador queria saber a opinião pessoal do sabatinado. (2) Invasão de competência. Evidente que o tribunal não deve “atravessar a rua” e sim respeitar a competência do Legislativo. Até as pedras da rua sabem disto. O examinador queria saber a opinião pessoal, clara e firme do sabatinado, sobre o que vem acontecendo no Judiciário. O sabatinado sequer lembrou que o tribunal legisla especificamente para o caso concreto sub judice, ao expedir mandado de injunção sempre que a omissão do legislador tornar inviável o exercício de direitos e liberdades fundamentais (CR 5º, LXXI). (3) Aborto. Evidente que há faceta religiosa, posições a favor e contra. O examinador queria saber a posição pessoal do sabatinado sobre essa matéria. A resposta veio emplastrada de vaselina. O sabatinado devia admitir clara, expressa e destemidamente a sua crença e explanar o seu ponto de vista sobre a lei penal em vigor. (4) Vista abusiva. Evidente que o pedido de vista é um direito do juiz no tribunal e que tal pedido é para o juiz melhor se inteirar da questão. Ao examinador interessava saber a opinião pessoal do sabatinado sobre o excesso de prazo. Como diz o ministro Marco Aurélio, não se há de confundir pedido de vista com perdido de vista. Há prazo regimental para o juiz devolver os autos do processo. O julgamento tem que prosseguir e os demais juizes devem proferir os seus votos. O juiz não pode servir-se da vista para retardar e até impossibilitar o voto dos seus colegas. Esse indecoroso comportamento justifica a destituição do juiz (impeachment). A situação de direito não convive com o abuso. O sabatinado mostrou-se condescendente com essa prática nefasta. Sinal de que teremos mais um Gilmar Mendes no STF, caso o citado candidato seja aprovado pelo plenário do Senado e nomeado pela Presidente da República.

Do exposto, não se conclui pela culpa da Presidente da República, porquanto, provavelmente, ela se baseou no currículo que lhe foi apresentado, sem conhecer esses aspectos da personalidade do candidato revelados na sabatina. Ademais, a presidente não está obrigada a nomear o sabatinado, mesmo que a escolha tenha sido aprovada pelo Senado. A nomeação se contém no poder discricionário da presidência, ou seja, submete-se aos critérios de oportunidade e conveniência. Chefe de Estado e de Governo, a presidente poderá, querendo, por prudência e conveniência, indicar outro candidato. O interesse da nação brasileira está acima da queda-de-braço entre situação e oposição e se sobrepõe às questiúnculas partidárias.  

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