sábado, 23 de maio de 2015

POESIA



Existe um rio amargo / banhando as terras do Sul / Anos a fio tive o gosto / de suas águas na boca / Existe um rio amargo / pardo de sujeira e lama / anos a fio seu veneno mau / me corrompeu o sangue/ De suas águas amargas bebi / e o fel ainda me azinhava a língua / misturado aos anseios que lá se afogaram / e suspensos à sua ponte de ferro / misturado aos anseios que lá se afogaram / na correnteza de silvos da serpente / de suas águas amargas bebi / e elas afogaram os meus sonhos todos / o livro lido – mas inútil / o instrumento empunhado – mas não usado / a lição aprendida – e perdida / a ambição solapada e partida.

Ó águas do rio amargo / com esse gosto de sangue e terra / por certo já não espelhai nem estrelas à noite / nem o sol ao meio-dia / O rio amargo não reflete as estrelas / apenas devolve o brilho das grades de aço / e dos rostos negros atrás das grades de aço / dos rapazes de Scottsboro atrás das grades de aço / de Lewis Jones atrás das grades de aço / dos mineiros indiferentes atrás das grades de aço / do líder trabalhista atrás das grades de aço / do soldado arrancado do ônibus de negros atrás das grades de aço / do fotógrafo ambulante atrás das grades de aço / da rapariga que faz negócio do seu corpo atrás das grades de aço / das costas do meu avô com degraus de cicatrizes / Há muitos e muitos anos – açoites e grades de aço - / o amargo rio já não reflete as estrelas.

“Tenham paciência”, diziam vocês / “Sua gente verá dias melhores” / Mas o redemoinho do rio amargo / engole vossas palavras / “Trabalho, educação, paciência / trarão dias melhores” / o redemoinho do rio amargo / arrasta as palavras ao fundo / “Miseráveis! Agitadores! Desordeiros!”, dizem vocês / mas os redemoinhos do rio amargo / arrastam as palavras ao fundo / “Miseráveis! Agitadores! Desordeiros!” dizem vocês / mas os redemoinhos do rio amargo / tragam as mentiras também.  

Não fui eu quem procurou nesse rio / o gosto de sua espuma amarga / Essas águas me foram dadas / como um presente por vocês / Vocês com seu poder é que me encostaram à parede / me obrigaram a beber a bebida amarga / feita de fel e de sangue / Vocês, com seu poder, lincharam meus camaradas / debaixo da ponte que cruza a correnteza / menosprezaram o meu trabalho / e cuspiram na cara do meu sonho / Vocês é que me empurraram para o rio amargo / cujas águas silvam como serpentes / Agora, as palavras não têm mais sentido / anos a fio bebi estas águas.

Sonhador de sonhos inúteis / construtor de esperanças condenadas / perdedor de salários miseráveis / carregador amargo de amarguras / e cantor de canções soluçantes / Anos a fio bebi as águas do rio amargo / pardas de sujeira e de lama / Estou farto agora do rio amargo / Estou farto das humilhações / estou farto agora das grades de aço / só porque negro é o meu rosto / Estou farto de segregação / farto de sujeira e de lama / Bebi as águas do rio amargo / e se fizeram aço no meu sangue.

Ó trágico rio amargo / onde bóiam os rapazes linchados / o fel de tua água amarga / não reflete nenhuma estrela / Estou farto do rio amargo / cansado das grades de aço.

(“O Rio Amargo”. Langston HUGHES. Traduzido por Sérgio Milliet).

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