terça-feira, 12 de maio de 2015

O JUIZ E O TEMPO



Os juízes dos tribunais superiores serão aposentados compulsoriamente aos 75 anos de idade nos termos da Emenda à Constituição (EC) promulgada pelo Congresso Nacional em 08 de maio de 2015. Antes da idade limite, o juiz será aposentado voluntariamente, após completar o tempo de serviço, ou involuntariamente, por incapacidade física e mental e por decisão judicial. O juiz também perderá o cargo se condenado pela prática de crime de responsabilidade (impeachment).
A emenda seria inconstitucional se, cuidando de aposentadoria dos juízes, ofendesse a regra fundamental da separação dos poderes (CR 60, §1º, III). Todavia, a matéria é de natureza previdenciária, comum a todo servidor público, sem ser exclusiva do Poder Judiciário (CR 93 + 40). Por outro lado, a iniciativa para propor EC está fora das atribuições dos tribunais. A estes compete somente a iniciativa de leis infraconstitucionais (CR 95, II, a + b).
Em 1987, formulei proposta de inclusão de 16 normas na futura Constituição (1988). Defendi a proposta no Congresso da Magistratura Nacional realizado em Recife e na Convenção do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional realizada em Porto Alegre, além de enviá-la à Assembléia Nacional Constituinte (ANC) reunida em Brasília. A maioria daquelas normas foi incluída no texto constitucional. Entre as normas não incluídas constava a da vitaliciedade plena (sem limite de idade), que tinha por modelo o disposto na secção I, do artigo III, da Constituição dos EUA: “Os juízes, tanto os da Corte Suprema como os dos tribunais inferiores, conservarão seus cargos enquanto procederem bem”. Na convenção de Porto Alegre, um desembargador sugeriu o limite máximo de 75 anos de idade. Eu insisti na proposta original: permanência no cargo sem limite de idade enquanto o juiz bem servir.
O interesse da nação sobrepõe-se ao interesse carreirista dos juízes. Não há engessamento. A carreira integra o quadro funcional de cada tribunal ordinário e não o quadro do tribunal superior. Dentro do quadro funcional do tribunal a que está vinculado, o juiz sobe degrau por degrau mediante promoção pelos critérios de antiguidade e merecimento. No quadro funcional do tribunal superior não há carreira, salvo a dos funcionários. O ingresso no tribunal superior se dá por livre escolha e nomeação do Presidente da República que inclui advogados, parlamentares e membros do ministério público além de juízes estaduais e federais. Quanto ao Supremo Tribunal Federal (STF), basta o candidato ser bacharel em direito, preencher os requisitos de notável saber jurídico e reputação ilibada e ser aprovado na sabatina perante o Senado.
A experiência forense revela: poucos juízes de carreira aspiram à judicatura nos tribunais superiores. O acesso depende de contatos políticos, de muitos apertos de mãos, de gastar saliva e sola de sapato pelos corredores e gabinetes do Senado e dos ministérios, de bom relacionamento com pessoas de grande influência e alta patente nas esferas civil, militar e religiosa. De um modo geral, os juízes de carreira têm pouca disposição de ânimo para tal empreitada comprometera da sua independência. 
A EC 88 ajusta-se à expectativa de vida em nosso país. Diferente do que ocorre na carreira militar e em outras carreiras, o juiz independe da plena forma física. Para exercer o cargo, o juiz não precisa ser um atleta e nem um garanhão. Basta que goze de boa saúde e tenha lucidez e disposição para o trabalho intelectual. A experiência judicante e o conhecimento acumulado na função constituem patrimônio valioso para a sociedade que se não deve desperdiçar. Ademais, para os cofres públicos não é interessante o pagamento em dobro: o do juiz que se aposenta ainda em condições de prestar bom serviço à nação e o do juiz que assume o seu lugar.
A função do juiz é conservadora por natureza: zelar pela vigência e eficácia da ordem jurídica, interpretar a norma jurídica e aplicá-la ao caso concreto, examinar os fatos com prudente distanciamento emocional. Logo, entendida como troca de pessoas idosas por pessoas jovens, a alegada oxigenação é um blefe. A necessidade de oxigenação é sentida em outros setores da vida nacional, como no esporte e no trabalho que exija força muscular ou cause excessivo cansaço físico. No Judiciário isto não acontece. Há juízes antigos que são operosos, sintonizados com a evolução social, mas suficientemente cautelosos para evitar a insegurança e a instabilidade provocadas pela jogatina política, pelo espírito novidadeiro, pelo sensacionalismo ou pelo modismo.  
Evolução social, tal como a dança, é movimento circular e retilíneo; progressivo e regressivo; implica mudança de posição para frente, para trás, para os lados. Mudança nem sempre traz progresso. Na composição atual do STF há juízes idosos. No entanto, a produtividade neste ano talvez seja a maior da história do tribunal, sem perda de qualidade.
Falacioso, também, o argumento de que a carreira ficará menos atraente com a permanência de juizes por mais cinco anos na cúpula do Judiciário. Como se deduz do que acima foi exposto, o argumento seria válido, quando muito, para os tribunais ordinários e nunca para os tribunais superiores. Contudo, os subsídios, as prerrogativas e as vantagens da magistratura continuam a ser atraentes. Haverá sempre bons profissionais dispostos a ingressar na carreira em virtude do poder de que serão investidos, da segurança financeira e do status social que ela proporciona. O concurso público de provas e títulos ainda é a melhor técnica para selecionar candidatos, em que pese o costumeiro jeitinho para aprovar os apadrinhados.
Aquele que tem real vocação para a magistratura pouco se importa com a aposentadoria. O seu objetivo é o de ser um bom juiz e serenamente prestar a tutela jurisdicional de acordo com a sua consciência e a ordem jurídica em vigor. O juiz subirá os degraus da carreira no devido tempo, quer por antiguidade, quer por merecimento. No que tange ao critério de merecimento, a minha proposta enviada à ANC, em 1987, reservava sua aplicação aos 10 juizes mais antigos na entrância. Isto atenuava o costume de se promover juizes apadrinhados e mais novos na carreira, em detrimento da promoção dos juizes mais antigos. A proposta foi acolhida um pouco diferente na redação, mas igual na essência moralizadora (CR 93, II, b). Amparado na garantia de inamovibilidade e visando a boa qualidade de vida, o juiz, querendo, pode congelar a carreira no interior do Estado.
A EC 88 atende ao interesse da nação, ainda que o motivo tenha sido politiqueiro: subtrair da Presidente da República, até o final do seu mandato, o ensejo de nomear novos ministros para o STF. A manobra não significou redução do poder da presidente como alardeado. Reduzidas ficaram as oportunidades de nomeação durante o seu mandato. Continua intacta a competência constitucional da presidente para nomear autoridades civis e militares (CR 84, XIII a XVII). Tanto assim, que nomeará mais um ministro que completará a composição do STF. Caso abra outra vaga no curso do seu mandato, ela nomeará novo ministro. Abrir-se-á vaga se algum ministro: (1) falecer; (2) ficar incapacitado para a função; (3) requerer aposentadoria (4) for destituído do cargo por decisão judicial ou parlamentar (impeachment).  
Sob o prisma moral e jurídico, os atuais ministros do STF, com exceção de Gilmar Mendes, exercem corretamente as suas funções. Neles não se percebe habitual predisposição para favorecer ou contrariar o governo, embora cada juiz tenha suas próprias convicções políticas, ideológicas, filosóficas, religiosas e visão de mundo. Seguem a máxima aparentemente tautológica do mundo forense: cada caso é um caso. A Constituição, a legislação, a jurisprudência e a teoria do direito servem-lhes de guia. Alguns pecam pela prolixidade e por muitas repetições ao votar, como se estivessem inseguros ou o voto fosse elaborado pelo assessor. Apesar disto e com a citada exceção, a atual composição do STF harmonizou-se com o dinamismo do mundo contemporâneo. As tertúlias, a sofisticação literária, a imitação do estilo de Ruy, a vaidosa exibição de cultura no debate da causa e na elaboração dos votos, cedem lugar, paulatinamente, à objetividade e ao pragmatismo, sem prejuízo da substância.
A função do juiz difere da função do professor. Dos tribunais, os jurisdicionados esperam decisões concisas, claras e convincentes que solucionem as controvérsias a contento. Sentenças (acórdãos) que, pelo volume de páginas, mais parecem monografias e livros, ainda que brilhantes, fogem ao escopo de síntese, celeridade e eficiência. Nas universidades, os estudantes esperam receber lições dos professores com base na ciência e na filosofia, que os capacitem para a vida profissional e lhes despertem o amor pelo saber.

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