terça-feira, 21 de agosto de 2012

MENSALÃO4


Ao utilizar o argumento de autoridade (ad verecundiam) o advogado de um dos réus, na sessão do dia 06/08/2012, citou Paulo Brossard, ex-ministro do STF, professor e político dos pampas. Em artigo doutrinário, o ilustre professor teria dito que além de símbolo religioso o crucifixo é também advertência aos juízes para não imitarem Pilatos que lavou as mãos, libertou um criminoso e condenou um inocente.
Há obstáculos na senda olímpica do octogenário, lúcido e insigne professor gaúcho. Como se vê do exame conjunto das narrações contidas nos quatro evangelhos, Jesus foi julgado e condenado à morte pelo Sinédrio, conselho judaico em Jerusalém dotado de autoridade nacional, constituído de sacerdotes, escribas e anciãos. Depois do julgamento e da condenação nos termos da lei judaica, Jesus foi conduzido ao pretório porque a pena de morte a que fora sentenciado só poderia ser executada se homologada por autoridade romana, de acordo com a lei romana vigente na Palestina, então sob domínio romano por força das armas imperiais. (Bíblia, Novo Testamento, Mateus 26: 57/66 + 27:1/26; Marcos 14: 53/64 + 15: 1/15; Lucas 22: 66/71 + 23: 1/25; João 18: 12/40 + 19: 1/16).  
Destarte, Pilatos não julgou e nem condenou Jesus. Ao descobrir que Jesus era galileu (gente que os judeus desprezavam) Pilatos o enviou a Herodes Antipas, governador da Galiléia, autoridade competente para conhecer e decidir questões relativas a pessoas sujeitas à sua jurisdição. O imperador romano dividira o território da Palestina e nomeara um governador para cada região, imitando os gregos (tetrarquia). O governador de cada região recebia o título de tetrarca. Ao tempo de Jesus, a Judéia era administrada por procurador imperial (Pilatos) e a Galiléia por agente da autoridade romana (Herodes). O tetrarca interrogou Jesus. Como o prisioneiro se intitulasse filho de deus, agisse como profeta e se afirmasse encarnação da verdade, Herodes dele zombou. Certamente, na avaliação do tetrarca, Jesus era um pobre diabo, mentalmente enfermo, que perambulava em terra palestina acompanhado de pequeno séqüito de analfabetos. Devido a esta aparente insignificância, historiadores da época, como Josefo e Tácito, ignoraram Jesus e seu pequeno grupo. Naquele momento faltava relevância histórica aos fatos ligados à vida do profeta. Vivendo aquele presente, faltava aos historiadores perspectiva histórica suficiente para perceber que daquele grupelho surgiria uma nova civilização (ocidental cristã). Somente nos evangelhos aqueles fatos foram relatados, aumentados, valorizados e coloridos pela fé e malícia dos narradores, sem a confiabilidade racional dos historiadores. Segundo tais relatos, Herodes não homologou a sentença de morte prolatada pelo Sinédrio. À luz do direito romano, não viu culpa alguma em Jesus e o devolveu a Pilatos. Por sua vez, convencido da inocência do prisioneiro, o procurador imperial também não autorizou a execução da sentença e anunciou a soltura. Diante do clamor público e da ameaça dos sacerdotes de denunciá-lo ao imperador romano por proteger um subversivo que pretendia ser rei, Pilatos seguiu certo costume ainda vigente e transferiu ao povo a decisão de soltar um condenado à morte. Concorreram Barrabás e Jesus. A escolha de quem seria crucificado coube aos judeus reunidos no pátio do pretório (sacerdotes, escribas, anciãos e populacho). Escolheram Jesus. Barrabás foi libertado. Incoerência e ironia: Barrabás era subversivo político (morte preferida pelos romanos); Jesus era subversivo religioso (morte preferida pelos judeus). Barrabás foi considerado criminoso porque pertencia à facção revolucionária e matara gente no movimento de sedição. Se no mesmo confronto ele estivesse a serviço da autoridade legal, mataria sem a pecha de criminoso. No pátio do pretório, na presença de Pilatos, os sediciosos pleitearam a soltura do seu herói. Os outros judeus que ali se encontravam e se sentiam desconfortáveis com o domínio romano na Palestina, uniram-se ao grito dos sediciosos: liberdade a Barrabás. Essa parcela do povo se decepcionara com Jesus porque ele recusara o honroso e perigoso papel de messias guerreiro libertador da Palestina. Meu reino não é deste mundo, dissera ao se esquivar da luta política. 
O crucifixo é símbolo religioso católico e não advertência aos juízes. Como ornamento dos tribunais, contraria a decisão do legislador constituinte de separar o Estado da Igreja e de instituir uma república laica. No Império vigorava religião oficial (católica). O predomínio dessa religião passou à República como hábito, apesar da liberdade de crença declarada na Constituição. O hábito afronta a isonomia republicana; discrimina outras religiões existentes na sociedade brasileira (judaísmo, islamismo, budismo, shintoísmo).
No pensamento cristão, política e religião não se misturam. “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Este foi o mandamento de Cristo. César é política. César é o Estado com suas funções legislativas, administrativas e judiciárias. A finalidade estatal é realizar o bem comum consubstanciado na ordem e no progresso. Em sintonia com a ordem jurídica, cabe aos juízes a função pacificadora de resolver controvérsias. Cabe-lhes tratar a todos isonomicamente, sem distinção de credo religioso. Cuida-se de justiça humana assentada na idéia de igualdade e não de uma justiça divina que ninguém sabe exatamente o que seja.

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