Ao utilizar o argumento de autoridade (ad verecundiam) o advogado de um dos réus, na sessão do dia
06/08/2012, citou Paulo Brossard, ex-ministro do STF, professor e político dos
pampas. Em artigo doutrinário, o ilustre professor teria dito que além de
símbolo religioso o crucifixo é também advertência aos juízes para não imitarem
Pilatos que lavou as mãos, libertou um criminoso e condenou um inocente.
Há obstáculos na senda olímpica do octogenário, lúcido e insigne
professor gaúcho. Como se vê do exame conjunto das narrações contidas nos
quatro evangelhos, Jesus foi julgado e condenado à morte pelo Sinédrio, conselho
judaico em Jerusalém dotado de autoridade nacional, constituído de sacerdotes,
escribas e anciãos. Depois do julgamento e da condenação nos termos da lei
judaica, Jesus foi conduzido ao pretório porque a pena de morte a que fora
sentenciado só poderia ser executada se homologada por autoridade romana, de
acordo com a lei romana vigente na Palestina, então sob domínio romano por
força das armas imperiais. (Bíblia, Novo Testamento, Mateus 26: 57/66 +
27:1/26; Marcos 14: 53/64 + 15: 1/15; Lucas 22: 66/71 + 23: 1/25; João 18:
12/40 + 19: 1/16).
Destarte, Pilatos não julgou e nem condenou Jesus. Ao descobrir que Jesus
era galileu (gente que os judeus
desprezavam) Pilatos o enviou a Herodes Antipas, governador da Galiléia, autoridade competente para
conhecer e decidir questões relativas a pessoas sujeitas à sua jurisdição. O
imperador romano dividira o território da Palestina e nomeara um governador
para cada região, imitando os gregos (tetrarquia).
O governador de cada região recebia o título de tetrarca. Ao tempo de Jesus, a Judéia era administrada por
procurador imperial (Pilatos) e a Galiléia por agente da autoridade romana
(Herodes). O tetrarca interrogou Jesus. Como o prisioneiro se intitulasse filho
de deus, agisse como profeta e se afirmasse encarnação da verdade, Herodes dele
zombou. Certamente, na avaliação do tetrarca, Jesus era um pobre diabo, mentalmente
enfermo, que perambulava em terra palestina acompanhado de pequeno séqüito de
analfabetos. Devido a esta aparente insignificância, historiadores da época,
como Josefo e Tácito, ignoraram Jesus e seu pequeno grupo. Naquele momento faltava
relevância histórica aos fatos ligados à vida do profeta. Vivendo aquele
presente, faltava aos historiadores perspectiva histórica suficiente para
perceber que daquele grupelho surgiria uma nova civilização (ocidental cristã). Somente nos
evangelhos aqueles fatos foram relatados, aumentados, valorizados e coloridos
pela fé e malícia dos narradores, sem a confiabilidade racional dos historiadores.
Segundo tais relatos, Herodes não homologou a sentença de morte prolatada pelo
Sinédrio. À luz do direito romano, não viu culpa alguma em Jesus e o devolveu a
Pilatos. Por sua vez, convencido da inocência do prisioneiro, o procurador
imperial também não autorizou a execução da sentença e anunciou a soltura.
Diante do clamor público e da ameaça dos sacerdotes de denunciá-lo ao imperador
romano por proteger um subversivo que pretendia ser rei, Pilatos seguiu certo costume
ainda vigente e transferiu ao povo a decisão de soltar um condenado à morte. Concorreram
Barrabás e Jesus. A escolha de quem seria crucificado coube aos judeus reunidos
no pátio do pretório (sacerdotes, escribas, anciãos e populacho). Escolheram Jesus.
Barrabás foi libertado. Incoerência e ironia: Barrabás era subversivo político (morte preferida pelos romanos);
Jesus era subversivo religioso (morte preferida pelos judeus). Barrabás foi considerado criminoso porque
pertencia à facção revolucionária e matara gente no movimento de sedição. Se no
mesmo confronto ele estivesse a serviço da autoridade legal, mataria sem a
pecha de criminoso. No pátio do pretório, na presença de Pilatos, os sediciosos
pleitearam a soltura do seu herói. Os outros judeus que ali se encontravam e se
sentiam desconfortáveis com o domínio romano na Palestina, uniram-se ao grito
dos sediciosos: liberdade a Barrabás.
Essa parcela do povo se decepcionara com Jesus porque ele recusara o honroso e
perigoso papel de messias guerreiro libertador da Palestina. Meu reino não é deste mundo, dissera ao
se esquivar da luta política.
O crucifixo é símbolo religioso católico e não advertência aos juízes. Como
ornamento dos tribunais, contraria a decisão do legislador constituinte de
separar o Estado da Igreja e de instituir uma república laica. No Império
vigorava religião oficial (católica). O predomínio dessa religião passou à
República como hábito, apesar da liberdade de crença declarada na Constituição.
O hábito afronta a isonomia republicana; discrimina outras religiões existentes
na sociedade brasileira (judaísmo, islamismo, budismo, shintoísmo).
No pensamento cristão,
política e religião não se misturam. “Dai a César o que é de César e a Deus o
que é de Deus”. Este foi o mandamento de Cristo. César é política. César é
o Estado com suas funções legislativas, administrativas e judiciárias. A
finalidade estatal é realizar o bem comum consubstanciado na ordem e no
progresso. Em sintonia com a ordem jurídica, cabe aos juízes a função pacificadora
de resolver controvérsias. Cabe-lhes tratar a todos isonomicamente, sem
distinção de credo religioso. Cuida-se de justiça humana assentada na idéia de
igualdade e não de uma justiça divina que ninguém sabe exatamente o que seja.
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