segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

TU4

Quarta parte.

A relação eu-tu, nós-eles, implica ordem e sistema, mesmo entre anarquistas. A organização atômica da matéria e o sistema solar como enclave de ordem na galáxia condicionam e determinam o ser vivo. A admirável organização do corpo reflete-se na arquitetura mental e na conduta do ser humano. Respondendo a essa pulsão ordenadora o tu e o eu, o nós e o eles, estabelecem convenções, costumes, leis; celebram pactos e contratos sob o pálio dessas ordenações, criando regras específicas. A Sociedade se desintegrará à falta de obediência a esse ordenamento de inarredável força coercitiva. A consciência da importância e da necessidade dessa ordem, seja do tipo monocrático, aristocrático ou democrático, leva os seres humanos a cumprirem-na espontaneamente.

Apesar da importância da ordem para a vida em sociedade, constante é a violação das convenções sociais e das normas éticas, jurídicas e religiosas. A desobediência provém do aspecto libertário da conduta humana. A desobediência civil pode mudar o regime político e gerar nova ordem em substituição à anterior. A desobediência a certas convenções sociais acarreta mudança, como acontece na moda, no sexo e hábitos comportamentais coletivos – às vezes com escândalo inicial, como no festival de Woodstock, nos EUA, ou a exposição da barriga de grávida por Leila Diniz, na praia de Ipanema. No oceano da desobediência navega o barco da liberação feminina. O poder matriarcal, na casa ou no palácio, vem de longe, ora às claras, ora camuflado pela sedução. Sócrates, filósofo heróico, submetia-se à autoridade e à impertinência de Xantipa, sua esposa. Herodíades manobrava Herodes Antipas; colocou sua filha, Salomé, a dançar sensualmente para o rei judeu e obteve a cabeça de João Batista. Os varões italianos são apegados e submissos à “mama” e à “nona”; os anglo-saxões às suas “momi”, inclusive os da América do Norte. No filme “Juventude Transviada”, estrelado por James Dean, ícone dos anos 50, o jovem norte-americano revolta-se ao ver o seu pai de avental, lavando a louça e limpando a cozinha, submisso à esposa.

As regras sociais nas esferas judaica, cristã e islâmica oprimem a mulher. No Ocidente, a desobediência da mulher a libertou. Costumes, moda e outras convenções mudaram ou se extinguiram. No calor, pouca roupa, pernas, seios e calcinhas à mostra; sutiã dispensado; virgindade desvalorizada, relação sexual pela simples atração física, sem pecado e sem amor; exercício de qualquer profissão; acesso às escolas e universidades; atividade política, inclusive chefias de Estado e de Governo; atividade econômica como empresária e empreendedora; atividade social evangelizadora e/ou de socorro aos doentes e carentes; atividade cultural como artista, escritora, professora, organizadora de eventos, museus e bibliotecas. Eis a mulher ocidental.

Há penas privativas de liberdade e penas pecuniárias aplicáveis a quem desobedece às leis. Medidas preventivas e repressivas são tomadas para coibir a desobediência. A necessidade de preservar a ordem justifica essas medidas. Açoite, mutilação, fogueira, empalação, apedrejamento, são algumas das penas cruéis proscritas da civilização ocidental, substituídas por outras consideradas menos afrontosas à dignidade da pessoa humana, tais como: enforcamento, fuzilamento, cadeira elétrica, injeção letal, prisão perpétua, prisão temporária, multa, prestação de serviços à comunidade.

As liberdades do eu e do tu se limitam reciprocamente. A luta pelo reconhecimento pessoal e pelo direito, em nível social, corresponde à darwiniana luta pela sobrevivência, em nível biológico. Para Thomas Hobbes, o ser humano é mau por natureza; a guerra de todos contra todos só foi refreada com a passagem da vida selvagem e anárquica à bem ordenada vida civilizada. Para Jean-Jacques Rousseau, o ser humano é bom por natureza; a sua degradação começa com o pacto social, na passagem da vida selvagem à vida civilizada.

À semelhança de Hobbes, Jean-Paul Sartre considera a beligerância uma característica marcante do ser humano; afirma que o inferno são os outros; o conflito é o sentido original do ser-para-outro; o amor é a vontade de possuir o outro; masoquismo, sadismo e desejo sexual governam as ações humanas; na maioria dos casos, o altruísmo é enganoso. Em posição oposta coloca-se Emmanuel Lévinas, para quem o paraíso é o outro; a relação entre o eu e o outro não é de confronto, mas sim de reencontro que ultrapassa o visível; a visualização desse reencontro é um infinito insondável de que cada outro é portador como tal; a religião é a estrutura derradeira, no sentido etimológico de vínculo irredutível que liga o eu e o tu a uma realidade superior; a relação com o outro obriga o eu a se abrir para o infinito e a se superar em uma transcendência; o eu se constitui pelo outro; graças ao tu, o eu se eleva às alturas; a civilidade, a hospitalidade, o pudor, o sacrifício, caracterizam as ações humanas.

Na senda traçada por Lévinas, tudo que o eu é, deve ao tu, à existência do outro eu; um eu é tributário de outro eu, que por sua vez é tributário de outro eu, e assim por diante, numa relação bilateral extensa e intensa. A perícia do eu pode salvar a vida do tu. A arte do tu desperta a admiração do eu e lhe causa prazer. O nós compartilha alegrias, tristezas, vitórias, derrotas, idéias, sentimentos, crenças e hábitos. Eles devem a nós tudo o que são; nós devemos a eles, tudo o que somos; o que uma geração é, deve à geração anterior.

Tanto Hobbes como Sartre não desconheciam os aspectos altruístas do eu, porém classificam-nos como secundários e enganosos; fundamentais são os aspectos egoístas. Rousseau e Lévinas não desconheciam os aspectos egoístas do eu, porém classificam-nos como secundários; fundamentais são os aspectos altruístas. Lá, privilegia-se o aspecto demoníaco do ser humano; cá, o aspecto angelical. O meio termo aristotélico parece via segura: equilíbrio entre o egoísmo e o altruísmo, entre o demônio e o anjo. A plena harmonia entre o eu e o tu, na vida terrena, afigura-se utópica, tendo em vista a acirrada competição por bens e posição de domínio no interior da família, da comunidade, da escola, da igreja, da empresa, do Estado. O egocentrismo prevalece. Há intervalos de altruísmo e solidariedade, como no século XVIII, quando o mundo ocidental proclamou a primazia da tríade liberdade, igualdade e fraternidade, ou no século XX, quando reconheceu direitos do trabalhador, do consumidor, do deficiente físico, da mulher, da criança, do adolescente, do idoso, do índio e houve liberação dos costumes, queda de tabus, amplo combate às doenças e defesa do meio ambiente.

Nas relações amistosas a escolha certa do tu é fundamental a uma vida feliz. O acerto na escolha compara-se ao acerto na loteria, tantos são os desacertos. Fechar-se em si mesmo de modo prolongado e como estilo de vida, causa depressão e infelicita o eu. Cuida-se de atitude contrária à natural sociabilidade humana. Meditação e oração ajudam a sair desse estado mórbido. Tal como as bênçãos divinas, os bens da natureza devem ser usufruídos por todos os seres humanos. Quando a humanidade colocar-se em sintonia com a lei cósmica, egoísmo e altruísmo encontrarão seu ponto de equilíbrio; demônio e anjo celebrarão a paz; o homem deixará de ser o lobo do homem.

Após um cálice de poesia, o próximo tema será VIDA.
Que a paz e o amor estejam com todos. Assim seja!

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