terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

TU

Primeira parte.

O drama humano condensa-se na relação entre dois EUS situados simultaneamente no mundo da natureza e no mundo da cultura. TU, sujeito periférico, distinto do EU, sujeito central da relação, pode ser uma pessoa, um grupo, uma nação. O tu exclui o eu, assim como o eles exclui o nós. Eis a separação primordial. Eles são os parentes, amigos, inimigos, vizinhos, estrangeiros, tendo o eu como centro de referência. Quando estranho à mesma família, o eles pode integrar o nós da mesma cidade. Embora pertencendo a diferentes cidades, o eles integra o nós da nação; sendo de nações diferentes, o eles integra o nós da humanidade. Conforme muda o centro de referência individual ou social, muda o eles em nós e vice-versa; fronteiras, cercas e muros deslocam-se.

Ego e alter assemelham-se na essência. Ambos sentem, querem, pensam e agem; comungam tempo e espaço; relacionam-se na família, na escola, na empresa, na igreja, no clube, no quartel, no partido político, na associação civil; aproximam-se por afinidade de interesses, aspirações, crenças, idéias, coordenando ou subordinando vontades.

Na conquista de objetivos comuns, ego e alter somam esforços e trilham a mesma senda. Na consecução do bem comum, governados e governantes associam-se na instituição estatal. Onde vigora o princípio democrático, os partidos políticos submetem nomes à escolha do corpo eleitoral. Os eleitores se fiam na indicação e confiam esperançosamente na honestidade e competência dos candidatos. A liberdade e o acesso à educação e à informação permitem ao eleitor o voto consciente e lúcido. Estados associam-se para fins estratégicos e econômicos constituindo o nós no plano internacional, hipótese em que o eles são os Estados não associados. A cooperação entre o eu e o tu, o nós e o eles, ocorre mediante instituições civis, militares, religiosas, místicas. O propósito cooperativo visa, entre outras coisas, a assistência mútua, o modo compartilhado de produção, circulação e consumo de bens, a preservação da boa qualidade de vida no planeta, a transmissão de conhecimentos e de valores morais e espirituais, a paz no seio da humanidade.

A relação de subordinação entre o eu e o tu, o nós e o eles, supõe hierarquia na sociedade, como acontece na família, entre pai e filho; na escola, entre mestre e discípulo; na empresa, entre patrão e empregado; no quartel, entre o militar mais graduado e o menos graduado; na igreja entre o papa e os cardeais. No exercício dessa hierarquia verifica-se desvirtuamento quando o genitor mantém relações sexuais com a prole, abusa nos castigos, ou abandona-a materialmente; o professor sonega conhecimentos ou os transmite aos alunos tendenciosamente com tintas ideológicas; o patrão, sem justa causa, demite o empregado ou lhe paga baixo salário; o instrutor submete o soldado a exercícios exagerados que lhe causam a morte; o abade exige, do noviço, práticas ascéticas que lhe debilitam a saúde; o governante oprime os governados e comanda sob o signo do arbítrio e da desonestidade.

O eu se relaciona com o tu, ora em plano de igualdade, ora em plano de desigualdade. A igualdade pode ser formal (ética e jurídica) ou material (social e econômica). Direitos iguais não significam patrimônios iguais. No plano empírico, a desigualdade econômica e social ocorre tanto nos países democráticos como nos países autocráticos, tanto no sistema capitalista como no sistema socialista. A realidade histórica dos séculos XX e XXI dá esse testemunho. O igual acesso de todos aos produtos úteis e necessários da civilização permanece no terreno utópico. A materialização desse princípio aguarda mais avançada evolução espiritual da humanidade. A pureza da teoria e da doutrina no campo da ciência, da filosofia e da religião choca-se com a miscelânea dos fatos e a contradição dos atos no mundo real. Tal pureza exercita o raciocínio, serve à propaganda e ao discurso suasório daqueles que disputam posições de mando na sociedade. Passados dois mil anos, a doutrina de Jesus ainda espera quem a pratique em sua pureza. A teoria pura do direito, exposta pelo jurista tcheco Hans Kelsen, invejável no seu rigor lógico, mostra-se insuficiente na visão cultural do fenômeno jurídico. Pontes de Miranda, notável jurista brasileiro, afirmava que o liberalismo absoluto e o socialismo apriorístico eram formas abstratas com as quais os ideólogos pretendiam moldar a matéria social.

Entre o ego e o alter, a igualdade reside na essência e a desigualdade na existência. No plano existencial, mesmo entre irmãos gêmeos, sempre haverá diferenças de natureza: (a) física, como as linhas do polegar; (b) psicológica, como a vocação; (c) lógica, como o grau de inteligência. A mesma experiência pode ser assimilada de modo diferente pelo eu e pelo tu.

A individualidade do tu acentua a individualidade do eu. Há, entre ambos, sociabilidade, afetos, satisfação dos apetites, permuta de bens, transmissão de conhecimento vulgar, técnico ou científico. Em relação ao eu, o tu pode se mostrar benéfico, maléfico, indiferente, agradável, desagradável, providencial, inoportuno, útil, nocivo, vantajoso, prejudicial, alegre, triste. Próximos no espaço, o eu e o tu podem estar distantes no tempo, por ausência de interesse, de vínculo afetivo, de comunicação. Distantes no espaço, ambos podem estar próximos no tempo, graças à memória, à saudade e aos meios de comunicação.

A inimizade entre o eu e o tu, entre o nós e o eles, surge da inveja, do ciúme, da competitividade. Atitudes que afrontam o interesse, a moral, o direito, o credo religioso, geram inimizade e litígios. Às vezes, sem intenção de ferir, violar ou magoar, o indivíduo causa ao outro, dano patrimonial ou moral; avilta o outro por palavras, gestos ou atitudes. Em concursos públicos de provas e títulos, em jogos entre duas equipes opostas, em eleições para cargos públicos ou para diretoria de associações e sociedades civis, o eu e o tu são adversários sem que haja inimizade. Estar no pólo oposto não significa ser inimigo necessariamente. Confronto de aptidões técnicas e intelectuais faz parte do processo de seleção dos mais capazes a determinada função ou tarefa.

Nenhum comentário: