domingo, 21 de fevereiro de 2010

TU3

Terceira parte.

O eu usa o tu como cobaia e bem de consumo, força de trabalho e instrumento da sua vontade, saco de pancadas e alvo de torturas físicas e mentais. Essa coisificação e degradação do tu pelo eu – ainda quando inconsciente e imperceptível em virtude da sua prática habitual no cotidiano – afronta a dignidade humana e evidencia atraso espiritual.

A existência do tu é imprescindível à do eu e vice-versa. Nas suas múltiplas relações, o tu e o eu podem ter conduta caridosa, solidária, valiosa do ponto de vista moral e religioso, que eleva a personalidade às cercanias de Deus. Quando não houver mais pobreza destinatária da bondade do eu, o campo da caridade ficará reduzido aos doentes, portadores de deficiência física e/ou mental. Um sorriso fraterno ou um abraço de compaixão a quem estiver sofrendo emocionalmente constitui ato de caridade mais sincero e significativo do que o frio lançamento da moeda na mão que o mendigo estende em súplica. O infortúnio do tu ou do eles, desperta a solidariedade no eu ou em nós. A ação solidária pode ser coletivamente organizada em corporações de defesa civil, de assistência social, de previdência social, em sociedades de beneficência e cooperativas de auxílio mútuo, visando ao socorro das vítimas, dos doentes, dos associados, da população carente. As vítimas dos fatos da Natureza como terremotos, maremotos, tempestades, estiagens, epidemias, pandemias, são as destinatárias do socorro humanitário que enobrece aqueles que o prestam. A ação predatória e poluidora do tu enseja ao eu, defensor do meio ambiente, o reconhecimento da comunidade.

O tu pode ser amigo ou inimigo do eu. A amizade constitui um vínculo afetivo que implica reciprocidade, dever de lealdade e de apoio moral. Tu és responsável por aquele que cativas, diz Saint-Exupéry no Pequeno Príncipe. A amizade contribui para a paz e facilita o convívio ameno e construtivo. A existência de amizade entre as nações foi negada, em momentos distintos, por De Gaulle, presidente da França, e Truman, presidente dos EUA. Na opinião deles, somente interesses guiavam as relações internacionais. Realisticamente, o estadista italiano Nicolau Maquiavel expôs essa verdade já no século XVI. Na trilha ética, todavia, essa verdade perde valor. Assim como os indivíduos, as nações devem cultivar amizade. As divergências devem ser solucionadas pela via pacífica. O Brasil adota essa doutrina, conforme princípios fundamentais enunciados na Constituição. Amigos divergem, mas buscam soluções pacíficas. Quando não chegam ao consenso, guardam suas posições sem violência, num clima de mútuo respeito. Nem sempre é assim, mas deve ser assim. A ética o exige. Há valores éticos absolutos, tais como justiça, honestidade, lealdade, veracidade, vigentes em nações civilizadas e respeitados por pessoas de bom caráter.

No seu microcosmo, ao tomar consciência do tu, o eu sente ameaçada a sua posição central. Sol do seu próprio universo, o eu percebe que é satélite no universo do outro. Essa percepção abala o egocentrismo. A atitude de defesa e de auto-afirmação é a reação básica e primitiva do eu ao se defrontar com o tu. Se não houver entendimento tácito ou expresso, instaura-se o conflito.

Quando o eu e o tu desejam o mesmo bem, em sendo este bem indivisível e insuscetível de usufruto conjunto, haverá disputa se um não ceder em favor do outro. A solução pacífica advém do consenso. A uma nação interessa, por exemplo, a passagem de oleoduto através do território da outra. Se esta negar passagem, ou estabelecer condições inaceitáveis para permiti-la, os interesses conflitantes colocam a guerra como alternativa, caso a nação interessada não se conforme com a negativa.

Tanto no plano individual como no coletivo, há relações de dependência entre o eu e o tu, entre o nós e o eles. Robinson Crusoé, solitário em sua ilha, livre das leis e da autoridade do Estado, serviu-se de bens produzidos pela civilização, aproveitados do naufrágio. Depois, o tu surgiu na pessoa do nativo, afastando a solidão e gerando normas de convivência. O branco civilizado batizou o nativo: deu-lhe o nome de Sexta-Feira. Arraigado à sua cultura, o branco solitário sentia necessidade do batismo e do calendário. A dependência é um estado natural desde o nascimento até a morte do ser vivo. Em nível singular, a dependência do ser humano é física, emocional e intelectual. Em nível coletivo, a dependência é social e econômica, seja o outro conhecido ou desconhecido, nacional ou estrangeiro, esteja próximo ou distante. Bens, costumes, conhecimentos, técnicas, circulam de um povo a outro, passam de uma geração a outra. Da sucessão e reprodução dessa cultura surge um tipo de civilização.

Sobra pouco espaço à independência e à liberdade do eu e do tu. Determinados pelas leis da Natureza, da Sociedade e do Estado, ambos sofrem o condicionamento do meio ambiente em que vivem e da cultura a que pertencem. Dir-se-á que as leis da Sociedade e do Estado e os valores que as informam resultam da autonomia do ser humano. Isto é verdadeiro enquanto se tomar a vontade e a razão como gênese das leis e dos valores. Afinal, como afirmava Protágoras, o homem é a medida de todas as coisas. Do poder normativo difuso na sociedade nascem costumes que disciplinam historicamente as relações entre o eu e o tu. Do poder normativo de um chefe de Estado ou de uma assembléia brotam leis escritas carregadas de intenções nem sempre voltadas ao bem da coletividade. Leis fundamentais do Estado garantem os interesses do grupo dominante na Sociedade. Cuida-se da dimensão social e civilizada dessa lei natural e selvagem: sobrevivência do mais apto e prevalência do mais forte.

Apesar da sua independência política em face do outro, o Estado contemporâneo está vinculado a normas provenientes de pactos, de contratos e de organismos internacionais. Há intercâmbio cultural entre os povos, mesmo diante de pretensões hegemônicas. O grande desenvolvimento da mídia nos dias atuais facilita esse intercâmbio e mostra essa realidade. O comércio internacional evidencia a interdependência. A escassez de bens e serviços confere poder de troca à nação que os possui.

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