sábado, 13 de fevereiro de 2010

POESIAS

O Cura, a quem toca a cura/ de curar esta cidade/ cheia a tem de enfermidade/ tão mortal que não tem cura: / dizem que a si só se cura/ de uma natural sezão / que lhe dá na ocasião/ de ver as moças no eirado/ com que o Cura é o curado/ e as moças seu cura são./ Desta meizinha se argúi/ que o tal Cura assezoado/ mais lhe rende o ser curado/ que o Curado que possui/ grande virtude lhe influi/ o curado exterior/ mas o vício interior/ amor curá-lo procura/ porque amor todo loucura/ se a cura é de louco amor./ Disto cura o nosso Cura/ porque é curador maldito/ mas ao mal de ser cabrito/ nunca pode dar-lhe cura:/ É verdade que a tonsura/ meteu o Cabra na Sé/ e quando vai dizer “Te/ Deum laudamus” aos doentes/ se lhe resvela entre dentes/ e em lugar de Te diz me./ Como ser douto cobiça/ a qualquer moça de jeito/ onde pôs o seu direito/ logo acha que tem justiça:/ a dar-lhe favor se atiça/ e para o fazer com arte/ não só favorece a parte/ mas toda a prosápia má/ se justiça lhe não dá/ lhe dá direito que farte. / Porque o demo lhe procura/ tecer laços e urdir teias/ não cura de almas alheias/ e só do seu corpo cura: / debaixo da capa escura/ de um beato capuchinho/ é beato tão maligno/ o cura que por seu mal/ com calva sacerdotal/ é sacerdote calvino./ Em um tempo é tão velhaco/ tão dissimulado e tanto/ que só por parecer santo/ canoniza em santo um caco:/ se conforme o adágio fraco/ ninguém pode dar senão/ aquilo que tem na mão/ claro esta que no seu tanto/ não faria um ladrão santo/ senão um santo ladrão./ Estou em crer que hoje em dia/ já os cânones sagrados/ não reputam por pecados/ pecados de simonia:/ os que vêem tanta ousadia/ com que comprados estão/ os curados mão por mão/ devem crer como já creram/ que ou os cânones morreram/ ou então a santa unção. (“O Cura da Sé” – Gregório de Matos).

Pequei Senhor, mas não porque hei pecado/ Da vossa piedade me despido/ Porque quanto mais tenho delinqüido/ Vos tenho a perdoar mais empenhado./ Se basta a vos irar tanto um pecado/ A abrandar-vos sobeja um só gemido/ Que a mesma culpa que vos há ofendido/ Vos tem para o perdão lisonjeado./ Se uma ovelha perdida e já cobrada/ Glória tal e prazer tão repentino/ Vos deu como afirmais na sacra história:/ Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada. / Cobrai-a e não queirais, Pastor Divino/ Perder na vossa ovelha a vossa glória. (“Pequei” – Gregório de Matos).

Não te vás, esperança presumida/ A remontar a tão sublime esfera/ Que são as dilações dessa quimera/ Remora para o passo desta vida./ Num desengano acaba reduzida/ A larga propensão do que se espera/ E se na vida o adquirir te altera/ Para penar na morte te convida./ Mas voa inda que breve te discorres/ Pois se adoro um desdém que é teu motivo/ Quando te precipitais me discorres/ Que me obriga meu fado mais esquivo/ Que se eu vivo da causa de que morres/ Que morras tu da causa de que vivo. (“Esperança” – Gregório de Matos).

Nise, vossa formosura/ queixosa de certo agravo/ me dá hoje uma no cravo/ e a outra na ferradura/ uma verde outra madura/ achei no vosso craveiro/ que o cravo é favor inteiro/ mas cravo com queixa ao pé/ é o mesmo que dizer que/ o gosto não mas o cheiro. / Que mal fica ao meu intento/ que o cheiro me queiras dar?/ dai-mo vós sempre a cheirar/ que que co cheiro me contento:/ quando um roçagante vento/ passa de uma em outra rosa/ e de cada flor cheirosa/ lhe leva a fragrância inteira/ se assim por seu modo a cheira/ também por seu modo a goza. (“Nise e o cravo” – Gregório de Matos).

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