quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

TU2

Segunda parte.

Os 10 mandamentos bíblicos disciplinam as relações entre o eu e o tu, o nós e o eles. Valem tanto para quem esteja vinculado à religião que os adota, como para todo aquele que os acate por dever de consciência. O crente que os contraria deve fazer penitência neste mundo e cumprir pena no outro mundo, segundo os preceitos religiosos e os anátemas dos profetas.

O tu pode ser Deus, a quem o eu deve amar. Esse dever religioso supõe a crença na existência e no poder de Deus. Tal crença leva o eu a construir a imagem do ser divino. A imagem pode ser a de um homem forte, idoso, poderoso, como a pintada por Miguel Ângelo no teto da Capela Sistina. Essa imagem antropomórfica é a mais comum; está mais próxima dos sentidos. No Antigo Testamento consta que Moisés viu as costas de Javé. Os astros também servem à imaginação. O Sol era símbolo de Aton, no antigo Egito, sob o reinado do faraó Aquenaton. A imaginação do eu não se detém na forma. Vai além. Atribui boas e más qualidades ao ser divino: justo, bondoso, misericordioso, rancoroso, vaidoso, intervencionista, exclusivista, genocida.

A imagem mais elaborada apresenta Deus como um ser amorfo, substância inefável, pura energia cósmica dotada de vontade e inteligência. A arquitetura da mente humana é forma delineada pela categoria de espaço e suas dimensões: altura, largura, comprimento. Essa arquitetura torna difícil à mente humana imaginar matéria sem forma; imaginar Deus como substância amorfa ou pura energia. Treinada, a mente poderá romper esse limite sem o risco de adentrar o terreno da insanidade. Entretanto, o eu dessa façanha fica sujeito à incredulidade e a ser visto como demente. O êxtase é personalíssimo. A transmissão da experiência extática a terceiros exige afinidade, sinceridade, confiança e boa fé entre o emissor e o receptor, sob pena de se frustrar.

O tu pode ser o próximo, a quem o eu deve amar como a si mesmo, consoante mandamento bíblico. Próximo opõe-se a distante. Tal oposição indica, prima facie, que o eu deve amar o tu que estiver perto, portanto, desobrigado de amar o tu que estiver longe. A dimensão psicológica, entretanto, dispensa a noção espacial: próximo é o tu membro da família e do círculo das relações fraternas e amigáveis do eu, ainda que do ponto de vista geográfico haja distância. Longe dos olhos, mas perto do coração, na poética expressão popular. A noção de distante aplica-se ao estranho, ao estrangeiro, a todo aquele que esteja fora da família, do círculo de amizade e de interesses do eu, embora possa estar ao lado, fisicamente. Ainda que estejas perto, sinto que não estás comigo, diz a canção romântica.

Amar a Deus, ao próximo e ao distante não se arrola como dever. Ninguém ama obrigado ou coagido. Como sentimento, o amor é livre, espontâneo e involuntário. O habitat do amor é o coração, via pela qual chegamos a Deus, segundo Blaise Pascal. O amor rebela-se contra a prisão ética; não se sujeita a regras; expande-se na liberdade estética. Ama-se a quem traz suavidade e meiguice ao nosso olhar e ternura ao nosso coração. O dever de amar gera hipocrisia e falsidade. Respeitar os pais e ampará-los é dever dos filhos; amá-los, cabe ao coração decidir.

Do ponto de vista biológico, próximo é o indivíduo que pertence à mesma espécie ou ao mesmo gênero. Nesta acepção e de acordo com o mandamento, o eu deve amar a todos os seres humanos ou a todos os animais. Francisco de Assis ilustra bem o eu que experimenta essa união mística. O santo católico sentia-se unido não só aos animais racionais e irracionais, como também, a todo o universo, tratando os astros fraternalmente (irmão Sol, irmã Lua). Ante a comunhão anímica do tu e do eu, o mandamento bíblico pode ser lido assim: ama ao próximo como tu mesmo. Isto implica extinguir a separação entre o tu e o eu, em nível espiritual. Aqui não se cuida de amar a si próprio e de amar ao próximo, mas sim de amar simultaneamente, como se o tu e o eu fossem uma só pessoa, unidade mística das personalidades no amor universal.

A unidade essencial do universo (múltiplo no uno) faz aparente e ilusória a separação do tu e do eu. A separação é física e contingente no plano da existência terrena. Como produtos da Natureza, o eu, o tu, o nós, o eles, nela se integram em rede de nexos físicos, emocionais, morais, espirituais. Os nexos permitem a telepatia, a comunicação por gestos, atitudes, ondas cerebrais. Súplica, humildade, conforto, amor, ódio, desprezo, arrogância, podem ser transmitidos através de um olhar, sem palavras. A clareza da mensagem é maior quando o receptor priva da intimidade do emissor. Mediante postura conveniente, no ambiente adequado e no momento propício, o eu se harmoniza com a Natureza, com outras mentes, com a alma cósmica, recebendo preciosas lições ou produzindo determinados efeitos.

Segundo as normas da moral, do direito e da religião, o tu deve ser respeitado em sua vida natural (não matarás), em seu casamento (não praticarás adultério) em sua família (não cobiçarás a mulher do próximo), em sua autoridade (honrarás ao teu pai e à tua mãe), em seu patrimônio (não furtarás), em sua vida social (não levantarás falso testemunho nem jurareis em nome de Deus; não semearás a discórdia no seio do povo, mas te ajustarás às leis; não oprimirás o próximo; não favorecerás o pobre nem terás complacência com o rico, mas julgarás segundo a justiça). Das relações intersubjetivas que se travam na vida social brotam regras de conduta cuja violação acarreta punições aos transgressores. As regras religiosas, éticas e jurídicas estabelecem deveres do eu para consigo mesmo, para com o próximo, para com Deus, para com a Natureza, a Sociedade e o Estado; declaram direitos à propriedade, à liberdade, à igualdade e à segurança. Aquele que transgredir os mandamentos religiosos sofrerá castigos no Inferno e no Purgatório. Quem violar as normas éticas ficará sujeito ao repúdio da Sociedade. A violação das normas jurídicas acarretará privação da propriedade e da liberdade, imposta pelo Estado ao transgressor.

Nenhum comentário: