sexta-feira, 13 de novembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXXI

A Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro celebrou com as empresas K. Inada Consultoria Econômica e Jabra Assessoria Comercial e Representações Limitada, contrato de concessão, por 20 anos, do serviço público de transporte urbano de superfície por meio de um trem de levitação magnética e de motor elétrico linear que deslizaria sobre um viaduto elevado. O trajeto previsto era do centro da cidade à Barra da Tijuca, passando pela Zona Sul e terminando na Zona Oeste. A licitação pública foi dispensada sob o argumento de que a tecnologia era exclusiva da empresa japonesa KSST – Kaihatsu Kabushiki Kaisha. Em 1996, o projeto estava orçado em U$1.084.852, 867 (um bilhão, oitenta e quatro milhões, oitocentos e cinqüenta e dois mil, oitocentos e sessenta e sete dólares).

As associações de moradores da Urca, do Botafogo, do Peixoto, do Jardim Botânico, da Gávea, do Horto Florestal, do Leblon e as comunidades da Cruzada São Sebastião, Selva de Pedra, Lauro Muller e Vila Benjamin Constant, temiam efeitos nocivos à qualidade de vida da população. Do ponto de vista estético, o trem causaria impacto na paisagem da cidade. Em certos trechos, o trem passaria perto das janelas dos apartamentos de ambos os lados do logradouro. Havia necessidade de analisar, de modo transparente, os efeitos do magnetismo do trem sobre a população, o nível de ruído, a trepidação que provocaria e a desvalorização dos imóveis. Discutiram o projeto com pessoas tecnicamente qualificadas. Alvitrava-se, como substituto, o trem metropolitano, com a vantagem de ser transporte de massa, mais barato e menos poluente. O trem japonês era luxuoso, tarifa alta e capacidade para atender a uma privilegiada e diminuta parcela da população.

A Associação dos Moradores e Amigos do Jardim Botânico (AMAJB) descobriu um trem similar ao japonês circulando em pequeno percurso da região norte da Alemanha, na fronteira com a Holanda. A implantação do trem japonês custaria 30 milhões de dólares por quilômetro construído; a do trem alemão custaria 16 milhões de dólares p/km. As referidas associações, por mim assistidas juridicamente, encaminharam petições à Prefeitura Municipal e à Câmara de Vereadores pleiteando o cancelamento do contrato. Como não obtiveram êxito, recorreram à via judicial. A Constituição brasileira reserva o pólo ativo da ação popular ao cidadão. Por isso, dois membros da AMAJB foram escolhidos para propô-la contra o Município do Rio de Janeiro e contra o prefeito em exercício, o ex-prefeito, as duas empresas e o agente financeiro. A pretensão era a de anular o contrato administrativo por falta de prévia licitação, além de outros vícios. Havendo dois fabricantes de produtos similares, fornecedores da mesma tecnologia, a licitação pública era indispensável.

As respostas dos réus foram extensas e agressivas. Afirmavam que a tecnologia do trem japonês era diferente da tecnologia do trem alemão e que o contrato preenchia os requisitos legais. Qualificaram a demanda como indevida intromissão nos negócios públicos. Atribuíram interesses subalternos aos autores da ação. Tais contestações revelaram o comportamento irracional das autoridades públicas quando questionadas e o modo leviano de aplicar o dinheiro do contribuinte. No exercício da autoridade, os governantes exibem pendores autocráticos, esquecendo as juras democráticas da campanha eleitoral. A política partidária, entendida como o conjunto de idéias e ações visando à conquista e manutenção do poder político, distingue-se da política entendida, no sentido amplo e original, como arte de governar o Estado. Na república democrática, o povo participa direta e indiretamente da arte de governar. Além do processo eleitoral, o povo dispõe de mecanismos judiciais e extrajudiciais de controle e fiscalização dos atos dos governantes. Entre os mecanismos judiciais está a ação popular, como direito político do cidadão, mediante a qual os atos lesivos ao patrimônio público podem ser anulados.

No exercício desse direito político, aqueles dois membros da AMAJB, na qualidade de cidadãos, invocaram a tutela jurisdicional para anular o contrato de concessão. Os réus encararam a demanda sob a ótica político-partidária, distorção comum aos governantes brasileiros. O controle pelo cidadão é visto como reação dos opositores políticos, de pessoas interessadas em retirar a estabilidade do governo ou prejudicar a carreira política do governante e dos seus correligionários. O administrador público dispõe de discricionariedade, mas deve atuar dentro dos parâmetros da moral e do direito. Discricionariedade e arbitrariedade são conceitos distintos. Arbitrariedade configura abuso de poder. A ordem jurídica é refratária ao abuso. Na república democrática, as decisões do administrador público, mesmo as discricionárias, estão sujeitas a controle. Constatada a antijuridicidade, os cidadãos têm o direito de pleitear a anulação do ato.

A comunidade carioca venceu a demanda judicial. Tratava-se de ação política no sentido amplo do termo; exercício da cidadania sem vínculo partidário, que evitou lesão múltipla: erário, meio ambiente e patrimônio cultural. A falta de licitação lesa o patrimônio público, deixa o fornecedor absoluto para fazer o preço e estabelecer as condições do negócio. Se houvesse concorrência, a Prefeitura Municipal obteria melhores condições e menor preço. A moralidade administrativa saiu arranhada na celebração do contrato impugnado. A autoridade pública sabia da existência de um produto similar. A dispensa da licitação ficou sob suspeita. A época era de eleições. Os partidos e os candidatos necessitavam de verbas para cobrir as despesas da campanha eleitoral. Alguns milhões de reais foram movimentados com rapidez. Não há notícia de que esse dinheiro tenha retornado aos cofres públicos.

A verificação do impacto do trem japonês ou do trem alemão sobre o meio ambiente não era privativa dos órgãos públicos. Pessoas físicas saudáveis, dotadas de mediana inteligência, podem ver e interpretar fatos e atos que agridem o meio ambiente. No patrimônio turístico da cidade do Rio de Janeiro, a beleza das suas paisagens ocupa lugar de destaque. Um trem apelativo, cuja artificialidade entra pelos poros do observador, a deslizar sobre uma plataforma elevada, contrasta com a exuberância da natureza carioca. Haveria uma interferência esteticamente desfavorável nas paisagens naturais da cidade ante o choque visual produzido por aquele bólido futurístico.

A compreensão do direito como fenômeno cultural é bem difundida no pensamento sociológico e jurídico do nosso tempo. Violar o ordenamento jurídico do país a fim de beneficiar empresa estrangeira pode tipificar atentado contra o patrimônio cultural do povo brasileiro. Nas contestações à ação popular, os réus invocaram os “usos administrativos” para justificar as cláusulas ilegais do contrato. Entretanto, na ordem jurídica brasileira vigora o princípio da estrita legalidade no âmbito administrativo. Praxe, uso, costume, curvam-se diante da lei. Ademais, nem tudo que é usual é lícito. No Brasil, a corrupção é usual e endêmica, mas permanece no terreno do ilícito. As normas penais continuam em vigor e são aplicadas em processos judiciais. Ainda que sejam usuais as cláusulas questionadas na ação popular, nem por isso deixam de ser ilícitas do ponto de vista moral e jurídico.

Medo, comodismo, desilusão, desesperança, sentimentos que geram o silêncio dos cidadãos brasileiros sobre negócios públicos, não eliminam o direito de petição constitucionalmente assegurado. O silêncio dos profissionais da política partidária sobre negócios com os financiadores de campanhas eleitorais não constitui atestado de idoneidade do administrador público. Esse tácito e centenário pacto de silêncio foi rompido no primeiro semestre de 2005, quando deputado federal da ala governista (Roberto Jefferson) desnudou a corrupção no âmbito dos poderes Executivo e Legislativo. O escândalo cruzou as fronteiras do Brasil. No intuito de impressionar os incautos, o administrador desonesto usa expressões do tipo “nem o meu maior inimigo colocou em dúvida a moralidade da minha administração”. A frase é imprestável para demonstrar a legalidade de um contrato administrativo, a começar pela falta de identificação do “maior inimigo”. Na seara política, o inimigo de ontem é o amigo de hoje; o amigo de hoje é o inimigo de amanhã. Lealdade entre essa gente é moeda rara. Organizado para atender ambições de grupelhos, o partido político perdeu a credibilidade. Adota programa para cumprir a legislação, sem a mínima intenção de torná-lo efetivo. Fidelidade partidária, de fato, jamais existiu.

A publicidade oficial, as obras e os serviços públicos sulcam as veias dos ganhos fáceis, no Brasil. Nesse mercado impera o pacto de silêncio entre os adversários políticos. Tão logo investidos no cargo público, os novos dirigentes adotam os maus costumes dos antecessores. Como se dizia na época do Império, não há maior conservador do que um liberal no governo. Não admira, pois, que o “maior inimigo” silencie sobre ilícitos praticados na administração anterior. “Farinha do mesmo saco, todos têm o mesmo DNA”, ouve-se nas ruas. Os cidadãos podem questionar a solução encontrada pelo administrador público, quando lesiva ao patrimônio da comunidade. Milita contra o administrador público brasileiro a presunção de desonestidade. Os maus costumes, histórica e culturalmente comprovados, autorizam a presunção desabonadora. Se existe solução viável, adequada e mais barata, a escolha de outra mais onerosa e menos adequada a atender às necessidades da população, caracteriza lesão ao interesse público. Nesse caso, a intromissão da comunidade nos negócios públicos se mostra justa e desejável.

Consta, em uma das contestações, que a “parceria visionária do governo municipal” (Cesar Maia) com “o aporte do maior grupo financeiro nacional” (Bradesco), tornaria o trem japonês viável no Brasil (embora não o tenha sido na Europa e nos EUA). Eis a minha réplica: parceria alucinada de administradores megalomaníacos que desperdiçam o dinheiro do contribuinte e não zelam por sua aplicação em obras e serviços de real necessidade e utilidade para a população.

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