sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXXV

Indenizações irrisórias fixadas pelo Poder Judiciário brasileiro em condenações por danos morais, longe de confortar, humilham as vítimas e seus parentes e incentivam o causador do dano à reincidência. Matar ou lesar a integridade física e moral das pessoas sai mais barato do que agredir a fauna ou a flora. A magistratura necessita acautelar-se contra o complexo de colônia de que padece a cultura nacional. Para ilustrar o tema, servem os dois exemplos citados em outro capítulo: (i) as famílias das vítimas do acidente com o avião da TAM, em 1996, que bateram às portas da justiça dos EUA, buscando indenizações justas e de maior valor do que as fixadas pela justiça brasileira; (ii) a intenção anunciada pelo Ministro da Saúde, no primeiro semestre de 1999, de pleitear indenização de milhões de dólares perante o Judiciário dos EUA, para ressarcir o INSS dos gastos com o tratamento de doenças causadas pelo consumo de tabaco. O ministro sabia que se a ação fosse proposta e vencida no Brasil, o valor do ressarcimento seria insignificante.

Jornais e emissoras de televisão noticiaram a decisão de juíza dos EUA que condenou uma companhia fabricante de cigarros, em março de 1999, a pagar 84 milhões de dólares a uma família cujo chefe morrera de câncer. O fumo causara a doença fatal. Nota-se, deste e de outros casos, que o juiz estadunidense, ao fixar o valor da indenização, não se incomoda se a vítima vai enriquecer ou não; ele tem na mira, principalmente, o poder econômico do responsável pelo dano. Se houver enriquecimento da vítima ou dos seus parentes, tanto melhor para a família e a sociedade; haverá maior circulação de dinheiro na cidade e no Estado. A quantia entesourada na empresa passa às mãos da vítima que poderá aplicá-la no consumo de bens, na bolsa de valores ou em outros investimentos.

A 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em sessão de abril de 1999, condenou empresa de transporte terrestre a indenizar, por danos morais, vítima de atropelamento que ficara 30 dias recebendo tratamento ambulatorial. Em seu voto, o relator fixara o valor da indenização em 30% do salário mínimo, o que, na época correspondia a 39 reais. O revisor ficou escandalizado e sugeriu quantia maior. Depois de demorada discussão, os julgadores chegaram a um consenso; fixaram o valor da indenização em um salário mínimo (130 reais). O melhor teria sido economizar aquele tempo, negar o dano moral (o que preservaria a dignidade da vítima) e passar para o processo seguinte da pauta (que era o do meu cliente).

Pelo valor irrisório, esse julgamento lembra outro narrado em filme: ação judicial proposta contra jornalista judeu, perante tribunal inglês, por um médico alemão que reputava ofensiva à sua honra a publicação de matéria que o acusava de servir ao nazismo. Após o devido processo jurídico, o tribunal condenou o jornalista a indenizar o médico pela honra ferida: meia libra esterlina. Mediante tal sentença, o tribunal manifestava o seu desprezo pelo nazismo e seus sequazes.

Ao contrário do juiz dos EUA, o juiz brasileiro, ao sentenciar, parece que fica a pensar na sua própria situação financeira e a compará-la com os ganhos que irá proporcionar à vítima (ou parentes). Em conseqüência, fixa o valor das indenizações em quantia irrisória e humilhante. A sentença foge a esse padrão quando o reclamante é alguma celebridade; invariavelmente, nesses casos, a indenização é milionária. As empresas jornalísticas, algumas vezes, são condenadas a pagar indenizações milionárias por ofensas morais. Se o tribunal levasse na devida conta o patrimônio do ofensor, o caráter pedagógico da sanção, a repercussão social, a reiterada prática de ilícitos morais provavelmente diminuiria.

Lugar comum, na doutrina e na jurisprudência, a assertiva de que a vida, a integridade física, a dor e a honra do ser humano são incomensuráveis. Para justificar acanhadas quantificações, magistrados se valem de argumentos frágeis e pouco convincentes, tais como: “a demanda não é meio de enriquecer o credor”; “a dor moral não se mede em pecúnia”. Ainda que a indenização e o patrimônio do credor sejam pequenos, o valor pago será sempre um acréscimo. No sentido amplo, esse acréscimo representa enriquecimento. Salvo malícia e conluio do magistrado com outras pessoas, o acréscimo em quantia elevada não configura enriquecimento ilícito ou sem causa, pois a licitude provém do devido processo jurídico. Há magistrados que, ao fixarem o valor das indenizações por dano moral, consideram o poder econômico das grandes empresas e dos bancos. Estes adotam preços e tarifas bem altos para o padrão brasileiro e têm lucro maior do que os seus congêneres do primeiro mundo. Quando condenados a indenizar, esbravejam e querem pagar quantias de terceiro mundo às suas vítimas no Brasil. Para eles, a integridade física e moral do brasileiro vale menos do que a do europeu ou a do americano do norte.

O dano moral é incorpóreo; ocorre na esfera psíquica do paciente. Por isso mesmo, não pode ser metrificado, pesado ou tabelado. Já basta a degradação do trabalhador quando vítima de acidente no trabalho, equiparado a um boi no açougue: cada membro, cada órgão do corpo do trabalhador, tem um preço fixado pelo Estado. A indenização por dano moral visa a compensar a vítima, ou seus parentes, com alguma alegria ou algum bem-estar que o valor em dinheiro possa lhe proporcionar. Além disso, tem um caráter punitivo em relação ao ofensor e um caráter pedagógico em relação à sociedade. Aos magistrados cabe examinar os fatos e suas circunstâncias, as condições sociais e econômicas das pessoas envolvidas, servindo-se das lições da experiência e do bom senso para encontrar a medida adequada e razoável.

Os lobbies dos diferentes setores da economia, como o bancário, o de seguros, de transportes aéreos e terrestres, de comunicações sociais, atuam no Congresso Nacional com o objetivo de obter leis que cortem em fatias a alma daqueles que sofrem dano moral. O pretendido tabelamento, além afrontar a dignidade humana, não considera o casuísmo nesse campo, onde o agente e o paciente têm perfil psicológico próprio e nem sempre comungam a mesma situação social e econômica. O melhor, ainda, apesar dos senões, é confiar no senso de proporção do juiz.

A primeira década do século XXI parece revelar cálculos mais criteriosos na avaliação do dano moral. No final do século XX, o Judiciário brasileiro já reagia em algumas ocasiões. No Estado do Paraná, em 1997, o tribunal de justiça confirmou sentença do juiz da 7ª Vara Cível da Comarca da Capital, que condenara uma poderosa emissora de televisão a pagar indenização de 150 mil reais por violar direito de imagem. Um cidadão encontrava-se na via pública quando a sua imagem foi captada isoladamente e projetada em programa de televisão sem a sua autorização. O juiz tomou como base de cálculo os ganhos da vítima. Adotou o entendimento de que o salário mínimo só deve servir de referencial quando os ganhos das vítimas forem desconhecidos.

Na cidade de Londrina, região norte do Estado do Paraná, em 1999, o juiz da 6ª Vara Cível condenou uma empresa de transportes aéreos a pagar à mãe de uma passageira, a quantia de 2 milhões de reais, sendo a metade desse valor por danos patrimoniais e a outra metade por danos morais. Logo após a decolagem, o avião caíra. Morreram passageiros e tripulantes. A empresa aérea tentou transferir a responsabilidade para o fabricante do avião, afirmando que a causa do acidente fora uma peça defeituosa. O juiz rejeitou a tese, apoiando-se na Constituição Federal e no Código de Defesa do Consumidor. Por se tratar de contrato de transporte, a questão devia ser resolvida entre as partes contratantes, exclusivamente. A sentença foi confirmada em 2000, porém, o tribunal de justiça reduziu em cerca de 70% o valor da indenização.

Nas capitais dos grandes Estados, onde as empresas de ônibus têm maior poder econômico, há sentenças condenando-as a pagar, a título de indenização por dano moral, de 10 a 100 salários mínimos, aos familiares de vítimas que perderam a vida em acidente de trânsito. Nos casos enquadrados no código do consumidor, como o indevido lançamento do nome da pessoa no cadastro de emitentes de cheques sem fundos, as indenizações por danos morais têm atingido a casa dos 200 salários mínimos, o que é uma fortuna se comparada à ninharia anterior, porém, quantia ridícula se comparada com os fabulosos lucros dos bancos no Brasil.

Há casos excepcionais de indenizações altíssimas, desproporcionais aos fatos e ao contexto social e econômico. Em algumas ações de acidente do trabalho, no Estado do Rio de Janeiro, ocorreu essa anomalia que enriqueceu um grupo de advogados; gerou processo penal em que juiz foi condenado por envolvimento no episódio. Em tais casos, o juiz perde o senso de medida e não leva em conta que está lidando com dinheiro dos trabalhadores. Por um dedo da mão decepado em serviço eram pagos milhões de reais em favor do acidentado. O dinheiro saía dos cofres do INSS. Pela desapropriação de imóvel que no mercado vale 100 mil reais, o Estado é condenado a pagar 1 milhão de reais. O dinheiro é do contribuinte. O juiz não está adstrito ao laudo pericial. Apesar disso, parece faltar-lhe, algumas vezes, coragem ou disposição para divergir do perito e arbitrar o valor com base nos dados dos autos, na sua experiência e no bom senso, em sintonia com a realidade.

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