sexta-feira, 27 de novembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXXIII

Ao julgar constitucional a taxação dos aposentados, o Supremo Tribunal Federal (STF) violou preceitos fundamentais da Constituição. Descumpriu o seu dever de guardá-la. Indecente parceria desnudou-se quando agentes do Executivo visitaram os ministros do STF e com eles confabularam sobre a matéria em julgamento. Para agradar ao presidente da república, sete ministros do tribunal equipararam o conceito “absoluto” ao conceito “fundamental”, mediante um raciocínio que pode ser assim expresso: “direito fundamental é direito absoluto; ora, não há direito absoluto; todo direito é relativo; logo, não há direito fundamental”.

Notável para a Física, a teoria de Einstein e da sua genial esposa húngara, quando transposta para o terreno da moral e do direito tem se mostrado catastrófica. “Há um tipo de gente presunçosa que gosta de afirmar que tudo é relativo. Isso é claramente um absurdo, pois, se tudo fosse relativo, seria relativo em relação a quê? É possível, porém, sem incorrer em absurdos metafísicos, sustentar que tudo no mundo físico é relativo a um observador. Mas, mesmo essa idéia, quer seja verdadeira ou não, não é a que a teoria da relatividade adota. Talvez, o nome seja infeliz; não há dúvida de que ele levou filósofos e pessoas pouco instruídas a confusões. Eles imaginam que a nova teoria prova que tudo no mundo físico é relativo quando, ao contrário, ela está inteiramente empenhada em excluir o que é relativo e chegar a uma formulação das leis físicas que não dependa de maneira alguma das circunstâncias do observador”. (Bertrand Russell, ABC da Relatividade, Rio, Jorge Zahar, 2005, p.29)

Arte, literatura, técnica, ciências naturais, ciências sociais, direito, moral, religião, misticismo, filosofia, compõem o mundo da cultura. Desse mundo, o ser humano é o criador. No campo da lógica, do direito, da ética, da estética e da religião há valores absolutos (verdade, justiça, bondade, beleza, santidade). A extensão desses valores na dinâmica social pode variar no tempo e no espaço. No Ocidente, durante a Idade Média prevaleceu o sagrado; na Idade Moderna prevaleceu o profano. Na Idade Contemporânea (séculos XX e XXI) o útil prevaleceu sobre o honesto; a economia dominou a política. Em decorrência das mudanças operadas nos costumes, nos interesses individuais e coletivos, nos recursos naturais e culturais, o pragmatismo amoral colocou a religião a serviço dos interesses materiais, arredou a ética e permeou a economia e a política.

Da relação entre os fenômenos da natureza advém a visão holística do universo. A relação entre os seres humanos é governada por leis naturais e culturais que, também, permitem a visão holística e o enfoque sistêmico. Princípios absolutos governam as relações, quer no mundo da natureza, quer no mundo da cultura. O relativismo (“tudo é relativo”) aplicado ao direito serve para afastar as regras que limitam e incomodam o governante. “Não há direitos absolutos”, bradam os defensores das razões do governo, sob as quais ardilosamente se abrigam os abusos. “Todo direito é relativo”, apregoam os corifeus dessa doutrina.

A questão do absoluto e do relativo está deslocada no Estado Democrático de Direito. Tanto o absolutismo da autoridade como o absolutismo da liberdade são estranhos à essência da república democrática. O exercício da autoridade e o exercício da liberdade estão limitados pelo direito segregado na história, tanto o direito contido nos costumes, nas decisões dos juízes e nas obras dos juristas, como o direito posto pelos legisladores. A relação abstrata, no âmbito teorético, entre direito absoluto e direito relativo, não se confunde com a relação concreta, no âmbito empírico, entre direito fundamental e direito derivado. Na concretude histórica, o legislador constituinte estabelece o direito fundamental. Em clima de normalidade democrática esse direito constitui intransponível limite à ação do governante. Trata-se de conquista da civilização ocidental. A abolição da escravatura no Brasil, por exemplo, foi uma conquista da civilização. Rompidos os grilhões, a liberdade converteu a coisa em pessoa e a pessoa em cidadão, sem necessidade de alterar os direitos fundamentais assegurados na Carta Imperial de 1824. O escravo/coisa tornou-se pessoa/sujeito de direitos e a sua dignidade foi reconhecida juridicamente. Liberto, o ex-escravo tornou-se titular dos direitos fundamentais que vigoravam antes da abolição. A sua inclusão social, entretanto, não foi simultânea ao reconhecimento jurídico. O ex-escravo e seus descendentes continuaram em posição subalterna na sociedade brasileira. O conceito de inferioridade próprio do regime de servidão converteu-se em preconceito no regime de liberdade.

Os direitos fundamentais resultam da soberana vontade do povo manifestada através do legislador constituinte. A estrutura jurídica do Estado decorre da decisão tomada pela assembléia constituinte, que expressa a vontade da nação em sintonia com as conquistas da civilização. A intangibilidade dos direitos fundamentais da pessoa humana em face da ação dos governantes é uma dessas conquistas históricas. O processo de sedimentação dessa conquista ainda não terminou. Os governantes tendem a ignorá-la, a contorná-la ou afrontá-la sem disfarce. Servem de exemplo o governo Cardoso (Brasil, século XX) e o governo Bush (EUA, século XXI). A segurança jurídica, a certeza do direito de cada cidadão, constitui um dos pilares do Estado Democrático de Direito. No entanto, contra a intangibilidade dos direitos fundamentais militam interesses poderosos. Parte da doutrina estrangeira está na defesa desses interesses. Abundam marionetes nos países periféricos. A doutrina alemã e a estadunidense são as que, atualmente, mais impressionam as mentes colonizadas nos rincões brasilienses. Afastar a referida intangibilidade interessa, por exemplo, ao Fundo Monetário Internacional, porque o seu receituário ficará livre de complicadores.

Na questão previdenciária, a decisão do STF ignorou essa intangibilidade e retrocedeu ao Estado Autocrático, em que as ações dos governantes colocam-se acima dos direitos fundamentais. Desse modo, a vocação autoritária do governo brasileiro, palatável aos organismos econômicos internacionais, encontrou guarida no STF, cujo presidente revelou inclinação mais para ministro do que para juiz, tanto assim que, no governo Silva, ele ocupa o Ministério da Defesa. No marcante e emblemático julgamento da questão previdenciária, ele fez questão de votar e exibir o seu incondicional apoio ao Executivo. Da história nacional e estrangeira verifica-se que esse tipo de cumplicidade acarreta antipatia popular à magistratura, falta de apreço que se traduziu em restrições à atividade judicial. Urge mudança na forma de selecionar os membros da mais alta corte de justiça do país, cujos lugares deverão ser ocupados por juízes estaduais e federais e não por alienígenas que se comportam como ministros ao invés de se comportarem como magistrados.

A assertiva de Nelson Rodrigues de que toda unanimidade é burra entrou no gosto popular, porém merece reparo. A unanimidade não é burra, nem inteligente; trata-se de um critério quantitativo de julgamento. Inteligente ou burra será a solução (individual ou colegiada) dada a certo problema. A solução apresentar-se-á, do ponto de vista qualitativo, como lúcida ou entrevada, útil ou nociva, justa ou injusta. A unanimidade em torno do verdadeiro, do bom, do justo, cota-se como racional e supõe uma pluralidade de juízos convergentes. A crença em um deus único pode ser unânime no interior de um grupo, porém, uma vez considerada toda a humanidade, essa unanimidade deixa de existir, pois no mundo há ateus e politeístas.

A decisão colegiada pode ser boa ou ruim, independentemente de ser unânime ou majoritária. O consenso de todos (unânime) pode derivar da pouca importância do tema, do mínimo grau de divergência, ou de ambas as coisas. Mantida a divergência, não significa, necessariamente, que a maioria julgou melhor do que a minoria. Prevalece a solução preconizada pelos julgadores em maior número. Apenas isso. O STF decidiu, por maioria, que era constitucional a emenda que modificou o sistema previdenciário, o que não quer dizer que a minoria estivesse errada, ou que o seu entendimento fosse qualitativamente inferior ao da maioria. A diferença situou-se no enfoque: o da maioria foi político; o da minoria foi jurídico. Entre respeitar os direitos fundamentais da pessoa humana ou atender aos interesses financeiros do governo, a maioria optou pelo segundo membro da alternativa. Evidenciou-se a ação ditatorial mediante o conluio da toga e da espada.

Governo, povo e território são elementos essenciais do Estado. Atender ao governo é atender ao Estado. Atender ao povo é atender ao Estado. Em uma república democrática não devia existir conflito entre governo e povo, pois o governo é organizado para servir ao povo, todo poder emana do povo e em seu nome é exercido. Todavia, há conflitos. Decidindo a favor do povo ou a favor do governo, a autoridade judiciária estará atendendo ao Estado. Os magistrados de formação democrática tendem a decidir em favor do povo e os de formação autocrática, em favor do governo. A ponderação entre os interesses do povo e os interesses do governo inclui: (i) a apreciação do fato e das circunstâncias políticas, econômicas e sociais; (ii) os princípios e regras de direito aplicáveis ao caso; (iii) a hierarquia entre esses princípios e regras. Eventualmente, o juízo político prepondera sobre o juízo jurídico. Quando isso acontece, os direitos fundamentais são lançados na areia movediça do relativismo. A segurança jurídica vai de cambulhada.

O legislador constituinte brasileiro declarou os direitos fundamentais na Constituição de 1988. Entre as garantias estão o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, corolários do princípio da segurança jurídica, cerne do Estado Democrático de Direito. Em sentido amplo, o conceito de lei inclui a emenda constitucional. A lei nova tem efeito prospectivo, deve respeitar aquelas garantias e não retroagir para prejudicar. As aposentadorias concedidas tipificam ato jurídico perfeito, regido pela lei do seu tempo, consoante preceito jurídico universal. Ao desrespeitar as citadas garantias, a decisão da maioria dos ministros do STF afrontou a intangibilidade dos direitos fundamentais; colocou em xeque a segurança jurídica dos brasileiros; gerou inquietude na alma do povo.

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