sexta-feira, 20 de novembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXXII

Juiz algum está obrigado a separar a sua cidadania do cargo que ocupa, até porque não seria juiz se não fosse cidadão. O magistrado comunga com os demais seres humanos a natureza política. Aristóteles já definia o homem como animal político. Além da racionalidade, o ser humano é o único animal que ri. Fundada no livro Gênesis, da bíblia hebraica, a Igreja exclui o ser humano do gênero animal; sustenta que o homem foi criado diretamente por Deus. Inobstante, Darwin e Spencer confirmaram a tese de Aristóteles: o homem pertence ao reino animal; resulta de um processo evolutivo. A ciência atesta o gênero comum ao fazer experiências com animais irracionais para aproveitar o resultado em animais racionais. A medicina cirúrgica constata a natureza animal comum aos racionais e irracionais.

O magistrado, como homem e cidadão, nutre simpatia pelo partido político cuja linha de pensamento e cujo projeto de governo tenham afinidade com a sua visão de mundo. O magistrado é eleitor e vota no candidato da sua preferência, porém está impedido de se filiar a partido político e de manifestar apoio a candidato ou partido. Ao se deixar, por exemplo, fotografar ou filmar ao lado de candidatos e permitir que a imagem circule pelos meios de comunicação, o magistrado está manifestando o seu apoio de forma explícita, embora passivamente. Ilustro com um caso concreto. O processo eleitoral para a presidência da república estava em pleno curso quando o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, a quem cabia a direção suprema do pleito, concede entrevista à imprensa e se manifesta favorável à reeleição do presidente da república (“A Folha de São Paulo”, caderno “Eleições”, 27.9.98).

Considerando que o ministro afirmou gozar de boa saúde mental, prescindindo de exame psiquiátrico, conclui-se que ele foi ingênuo ou leviano. A um juiz da mais alta corte de um país não se admite ingenuidade. Ao atribuir responsabilidade ao jornal pela falta de censura ao texto, o ministro olvida a liberdade de imprensa em vigor no país e se põe aquém do notável saber jurídico que dele se espera. Como magistrado na presidência do tribunal, o ministro estava impedido de declarar e antecipar o seu voto. A sua opinião sobre a permanência do presidente da república no cargo e sobre o modelo econômico adotado pelo governo está no terreno da convicção pessoal e não da mera hipótese, como bem percebeu e explorou o jornalista (manchete do jornal). Ao externar a sua opinião, o ministro contribuiu, com o peso do seu cargo, para a campanha eleitoral do presidente da república. A inconveniência foi além dos limites: fora do devido processo legal, o ministro absolveu o presidente da república da acusação de abuso de poder, de promoção pessoal com recursos do erário, mas condenou os prefeitos e governadores do norte e do nordeste do Brasil por ilícito idêntico. Ao exibir tamanha parcialidade, o presidente do Superior Tribunal Eleitoral se tornou suspeito e tinha o dever moral e jurídico de se afastar da direção do processo eleitoral. No entanto, permaneceu no cargo até o fim das eleições.

No que tange ao conteúdo do pronunciamento do ministro, pondere-se com o direito dos eleitores de discordarem, porque deles é a soberania diretamente exercida no processo eleitoral. Cerca de 2/3 do eleitorado brasileiro entendiam inconveniente a permanência do presidente da república no cargo e que o seu afastamento era um imperativo da razão e do bom senso, pois, a sua gestão dos negócios públicos, durante o primeiro mandato, levara o Brasil a uma situação falimentar, decuplicando a dívida brasileira. O modelo econômico, fator de enorme desemprego, com dezenas de milhões de brasileiros na miséria, longe de ser mantido, havia de ser substituído, com a maior urgência, por um modelo mais humano e mais adequado aos interesses nacionais. A Alemanha, nessa época, rejeitara o liberalismo econômico. O povo alemão escolhera um representante da esquerda para comandar os destinos daquele país. Na Inglaterra, um trabalhista assumira o cargo de primeiro ministro.

No período autocrático brasileiro, década de 70, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi chamado a se pronunciar sobre o caráter real ou nominal da garantia da irredutibilidade dos vencimentos dos magistrados, tendo em vista que a inflação reduzia o poder aquisitivo da moeda. Os vencimentos não eram indexados aos índices que mediam a inflação. O STF colocou-se em harmonia com a política do governo e decidiu que a garantia da irredutibilidade era nominal. O magistrado podia, por exemplo, ficar 10 anos recebendo a mesma quantia mensal de R$3.000,00, ainda que a inflação no período fosse de 1.000%. O que não podia era receber menos de R$3.000,00. Isto reduzia a cinzas a garantia constitucional.

A Suprema Corte dos EUA, na mesma época, foi chamada a resolver igual problema. A inflação naquele país chegara ao patamar de 5% ao ano, o que deixou os magistrados ianques em polvorosa. Apoiados na garantia da irredutibilidade dos subsídios, os juízes pleitearam reajuste imediato. A Suprema Corte levantou questão preliminar sobre a sua legitimidade para decidir a questão, pois os seus juízes seriam beneficiados na hipótese de decisão favorável. Em última análise, estariam julgando em causa própria. Os juízes invocaram um precedente da corte londrina sobre a lei natural da necessidade. Se não havia no país outro órgão competente para prestar jurisdição naquele caso, não restava alternativa: a Suprema Corte teria de fazê-lo. Superada a questão preliminar, os juízes entraram no mérito e decidiram que a irredutibilidade dos subsídios era real e não nominal. Ante a inflação, os vencimentos tinham de ser reajustados, pois do contrário a independência dos magistrados estaria ameaçada; a garantia constitucional restaria letra morta. Não havia como escapar a essa constatação lógica: ao perderem seu poder aquisitivo, os vencimentos sofriam redução de fato. A garantia constitucional visava resguardar o padrão de vida do magistrado em face de eventual política degenerativa de qualquer dos poderes da república. O resguardo fazia parte do mecanismo de freios e contrapesos tão caro ao sistema constitucional das repúblicas democráticas.

Nada mais indecoroso do que a cumplicidade da magistratura com projetos do Executivo quando, em nome da harmonia entre os poderes da república, sacrificam direitos fundamentais e abalam os valores morais vigentes na sociedade. Harmonia entre os poderes não significa cumplicidade ou parceria; significa, isto sim, mútuo respeito, ausência de hostilidade, cada qual exercendo a sua competência dentro da estrutura criada pelo legislador constituinte. A imprensa noticiou os seguintes fatos ligados ao presidente do STF em exercício no período de 2004/2005, que afrontaram a imparcialidade e a moralidade: (i) quando era deputado constituinte, reunido com outros deputados em eclesial gabinete, modificou o texto constitucional aprovado pela Assembléia Nacional Constituinte, sem prévia autorização e conhecimento do plenário; (ii) no seu discurso de posse como presidente do STF, estabeleceu parceria com o Poder Executivo; (iii) no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade sobre a taxação dos aposentados, fez questão de votar, embora a tanto não estivesse obrigado, confirmando a parceria com o Executivo. Diante das câmeras de televisão, vangloriou-se daquela modificação feita à sorrelfa no gabinete do relator do projeto da Constituição. Contou o episódio como se fosse uma elogiável esperteza. Esse fato escandalizou os meios políticos e jurídicos. A atitude do ministro revelou certa opacidade à luz da moral, insensibilidade ética muito comum no comportamento de alguns políticos da atualidade.

A parceria entre o STF e o palácio do planalto foi uma das celebrações mais indecentes que já se viu nestas plagas. Ser parceiro é ser par, companheiro, sócio em atividades e propósitos. Parceria significa pessoas em torno de fins comuns, partilhando lucros e perdas. Ser parceiro do Executivo significa associar-se aos projetos e ações do governo, mesmo que contrariem preceitos constitucionais e legais. Em sendo parceiro, o STF é suspeito de parcialidade para julgar causas em que o Executivo seja autor, réu, assistente ou oponente. Reputa-se fundada a suspeição quando o juiz aconselha alguma das partes acerca do objeto da causa e/ou for interessado no julgamento da causa em favor de uma delas. A parceria, por ser fundada em interesses e objetivos comuns, implica orientação mútua entre os parceiros. Faltará ao STF, indispensável distância para julgar negócios do seu parceiro em processo judicial. Apesar da suspeição, haverá julgamento, porque não há outro tribunal hierarquicamente superior. A tendência natural é a de apoiar os interesses do parceiro, evidenciando a parcialidade.

A suspeição ficará menos chocante se o título de “ministro” dado aos membros do STF receber a sua real significação. Desse modo, no exercício das suas funções, os membros do STF estariam praticando atos de ministro e não de juízes. Ministro é órgão auxiliar do Chefe de Estado, tanto nas monarquias como nas repúblicas. Juiz é órgão que presta jurisdição com independência em relação ao Legislativo e ao Executivo (independência sem hostilidade, harmonia sem cumplicidade ou parceria). Desde o golpe militar de 1964, os membros do STF passaram a se comportar mais como ministros e menos como juízes. Promulgada a Constituição Federal de 1988, havia esperança de que os ventos democráticos mudassem esse quadro. Doce ilusão. Ficou pior. Enquanto houver mais ministros do que juízes no STF, periclitarão os direitos individuais e coletivos quando opostos aos interesses do governante.

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