sexta-feira, 23 de outubro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXVIII

Na exposição destas reminiscências, a linguagem ora exibe frieza técnica, ora calor humano. Adentra, às vezes, a esfera literária, com doses de bom humor alternando com acidez na crítica. Optei por não esconder o nível emocional da narrativa; procurei favorecer a espontaneidade e a naturalidade. De alguns casos narrados dou meu testemunho; de outros, ouvi dizer e confiei na fonte. Alguns casos são do conhecimento geral; outros, do conhecimento de poucos. De alguns casos, fiquei ciente por intermédio dos livros, revistas, jornais, emissoras de televisão, rede de computadores, palestras e conferências. Há passagens vinculadas à vida da minha família, dos meus amigos, dos meus colegas e da sociedade.

Cônscio da imperfeição humana, eu me acautelei na análise da experiência. Confio moderadamente no meu aparelho sensorial para captar os impulsos externos que trazem informação sobre o mundo e na minha faculdade mental analítica, sem abdicar da necessária e constante vigilância. Mereço alguma confiança na medida em que também a merecem os cientistas, juristas, sociólogos e filósofos que observam a realidade na busca de explicação e compreensão. Nesse particular, posso afirmar com Descartes: cogito ergo sum; sum cogitans – penso, logo, existo; existo porque penso. Além do método cartesiano, sirvo-me do método histórico. Na tentativa de chegar a um nível diferente de consciência, sirvo-me das técnicas místicas. Concedo-me o direito de invocar a justificativa de Montesquieu, vencendo a modéstia, no prefácio do seu famoso livro “O Espírito das Leis” ao citar frase de um artista: “afinal, eu também sou pintor!”

Aposentado, resolvi advogar. O escritório serviria de laboratório para o meu filho mais velho, estudante de direito à época (hoje, Evandro está formado e se dedica à atividade de assessoria jurídica). A OAB/RJ não aceitou requerimento de inscrição por mim elaborado. Exigiu o preenchimento do formulário de pedido de inscrição. Preenchi e anexei o mobralesco formulário ao requerimento. Insatisfeita com o diploma de bacharel em direito, com o certificado de mestrado em ciências jurídicas, com a anterior inscrição na OAB/SP e com os documentos comprobatórios do exercício da judicatura no Paraná e no Rio de Janeiro, a OAB/RJ exigiu declaração de autenticidade do diploma expedido pela faculdade de direito. No verso do diploma já estava certificado o registro no Ministério da Educação e no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. A abusiva exigência retira da OAB/RJ, a autoridade moral para reclamar da burocracia do Estado. Inobstante o abuso, atendi à exigência para não me desgastar com processo administrativo e judicial.

A advocacia foi mais desgastante do que eu imaginava. O advogado tem que enfrentar a fama de ladrão. Aquele que exerceu a judicatura e volta a advogar defronta-se com a pecha de traficante de influência junto aos órgãos do Poder Judiciário. Aliás, não estava fora de cogitação a esperança nutrida por clientes de que eu usasse o título de magistrado para angariar decisões favoráveis. Grande é a responsabilidade do advogado para com a clientela. Entretanto, nem sempre a clientela é correta nas relações com o advogado. Perdida a demanda, o advogado transita do céu ao inferno. A morosidade dos trâmites processuais é vista por alguns clientes como desídia do advogado e não como deficiência crônica do Judiciário. No quadro da morosidade, os trâmites processuais dependem, algumas vezes, da propina, instituição vigente nos costumes judiciários, embora negada oficialmente.

Aliás, a corrupção grassa no setor público, em todas as esferas (municipal, estadual e federal), na administração direta e indireta. O fenômeno é geral, público e notório. Os beneficiários, agentes ativos e passivos da corrupção se dizem honestos ou se justificam afirmando sintonia com os costumes. Impera o mimetismo imoral: os governantes afirmam que nada fazem além do que os antecessores também fizeram. A impunidade é a regra. No bolsão da decência, a pequena parcela da sociedade se diz impotente para combater um costume centenário enraizado na cultura brasileira. A corrupção elevou a dívida brasileira à casa do trilhão de reais, invadiu as licitações públicas, produziu obras e serviços de terceira categoria como se fossem de primeira (o que exige reparos constantes e aumenta a despesa), escangalhou a previdência social, colocou em risco a saúde do povo, nulificou a segurança pública, mantém deficiente a educação e em nível de miséria e pobreza a maior parcela da população.

O magistrado em atividade vê no aposentado que advoga um agente do tráfico de influência. Encontro, casualmente, na Rua da Assembléia (centro do Rio de Janeiro) com o desembargador Alberto Craveiro de Almeida, colega de concurso, que diz: “Lima, visite-me no gabinete ou em minha casa (morávamos na Barra da Tijuca), mas, por favor, não trate de processo”. Nunca o visitei, nem a outro colega em atividade, embora me convidassem em encontros ocasionais. A ressalva daquele colega trazia embutido conceito negativo da minha pessoa: o pressuposto de que o meu caráter mudara com a aposentadoria e que eu seria capaz de deslealdade e tráfico de influência em prejuízo dos adversários. Enganou-se redondamente.

Atuei em escritório de advocacia no centro do Rio. O escritório de certa empresa, que negociava com ouro, foi invadido pela polícia federal. Coube-me a tarefa de acompanhar o caso. O escritório da empresa estava em polvorosa. Agentes policiais de sala em sala revirando tudo e apreendendo documentos e equipamentos. Prenderam um diretor. Acompanhei o preso até a delegacia. Lavraram o flagrante. Lá fiquei até de madrugada quando, então, conversei com o delegado sobre a situação do diretor e sobre a precariedade da prisão, pois bastava a apreensão de todo aquele material e instaurar inquérito comum. O delegado concordou, rasgou o auto da prisão em flagrante e liberou o diretor. Passados poucos dias, compareci à reunião solicitada por agente policial que me informou sobre os custos do procedimento. Disse-lhe que tal assunto devia ser tratado com o diretor-presidente. Data marcada, local neutro (aeroporto) realizou-se a entrevista sem a minha presença. Prestei assistência aos diretores na delegacia durante o inquérito policial. Em virtude da minha capacidade mnemônica para reduzir a termo depoimentos, o escrivão permitiu que eu os ditasse. Ele só datilografava. No final, todos assinavam. Quando saí do escritório para montar o meu próprio, a ação penal ainda não tinha sido proposta (1990).

Ainda naquele escritório, atendi a um oficial da aeronáutica reformado, indicado por um magistrado. Tratava-se de desavença entre ele e o vizinho da cobertura do edifício em que morava. Esse vizinho era juiz de direito. Fiquei em situação difícil. Assumi a minha nova condição de advogado militante e aceitei o patrocínio da causa. O processo durou anos. Por intermédio desse cliente, fiquei sabendo algumas coisas do período da ditadura militar cujo conhecimento era restrito a poucas pessoas.

Montei o meu próprio escritório na Barra da Tijuca, onde morei na década 1991/2000. Lá recebo a visita de uma arquiteta que se fazia acompanhar do pai. Tentava recuperar apartamento ocupado indevidamente pelo ex-marido, inglês de família abastada, dono de usina de açúcar em Campos/RJ. Proposta a ação adequada, ela recuperou o apartamento. A indenização pela ocupação ilegal do imóvel ela ainda não recebeu, decorridos 19 anos, tais os entraves provocados pelo devedor e decisões equivocadas dos juízes que atuaram no processo, gerando inúmeros recursos.

Ao tempo em que ainda morávamos no Leblon, Jussara e eu comparecemos a uma reunião em Ipanema organizada por pais de alunos do colégio em que estudava Gabriela, nossa filha. Havia descontentamento com as mensalidades escolares. O organizador do encontro pediu ajuda dos pais que fossem advogados, para tomar as medidas judiciais no caso. Dois se apresentaram. Atendendo ao pedido de Jussara, também me apresentei. Acontece que daqueles dois, um era juiz do trabalho e outro vogal de junta de conciliação e julgamento. Só eu podia advogar. Certamente havia outros, pois eram numerosas as pessoas que compareceram à reunião, porém, ninguém mais se apresentou. Fiquei sozinho no patrocínio da causa. Fundamos uma associação de pais. Entramos com ação coletiva. Não tivemos sucesso. A juíza e o tribunal entenderam inválida a representação dos pais. A associação tinha menos de um ano de existência. Fizeram tabula rasa da exceção prevista em lei. O colégio tinha músculos fortes. Foram propostas, então, dezenas de ações individuais, com os mesmos fundamentos jurídicos e idênticas pretensões. Salvo duas ou três dessas ações, tivemos êxito nas demais. Em uma ação perdida aconteceu o insólito. No mesmo dia, na mesma sessão da mesma câmara cível, os mesmos desembargadores que momentos antes haviam julgado procedente outra ação igual, julgaram improcedente a que lhe seguiu.

Na referida sessão de julgamento, depois da breve e rápida sustentação oral em que me reportei ao caso julgado no minuto antecedente, o relator (que não simpatizava comigo desde a época da fusão da GB com o RJ) teve o desplante de dizer que aquele caso era diferente। Só o pólo ativo era diferente: nome do aluno e respectivos pais. Tudo o mais era igual. Os desembargadores resolveram apoiar o colega. O espírito de corporação triunfou sobre a verdade e a justiça.


Certamente, no caso em tela, o relator atendia a algum pedido ou, então, julgava por antipatia à minha pessoa। Esse magistrado sentia-se inferiorizado por ser oriundo da magistratura do antigo Estado do Rio de Janeiro, enquanto eu pertencera à magistratura do antigo Estado da Guanabara। Além disso, acidentalmente, eu assistira à sabatina dele na PUC/RJ, ao final do curso de mestrado, ocasião em que ele se embaraçara ao defender oralmente a sua dissertação escrita sobre abuso de direito.

Nenhum comentário: