sexta-feira, 6 de novembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXX

O poder humano sofre determinações biológicas, psicológicas, morais e jurídicas. A pluralidade de sujeitos na sociedade civil dificulta o pleno e unilateral exercício do poder. A coexistência de governantes e governados só é possível porque são respeitados limites recíprocos no exercício do poder. O tipo hobbesiano de estado selvagem (guerra de todos contra todos) é postulado teorético sem correspondência empírica. No estado de natureza (status naturalis) os conflitos entre grupos se resolvem pela força e astúcia (morte, escravização); no interior de cada grupo, os conflitos se resolvem pelos costumes vigentes (duelo, ostracismo). Quando grupos gentílicos se unem sob a mesma chefia e se fixam sobre a mesma base territorial, criando órgãos permanentes dotados de poder eficaz para a defesa externa e solução dos conflitos internos, surge o estado civilizado (status civilis). A organização do poder no seio de um povo gregário, da qual resulta a distinção entre governantes (titulares da autoridade) e governados (titulares da liberdade) denomina-se Estado. Autoridade e liberdade são formas do poder. Autoridade é um poder de império que se manifesta verticalmente como aptidão do sujeito para: (i) impor a verdade das suas idéias e a virtuosidade do seu sentimento, da sua vontade e da sua conduta; (ii) ordenar e exigir o cumprimento do que foi ordenado. Liberdade é um poder de igualdade que se manifesta horizontalmente como aptidão do sujeito para: (i) pensar e manifestar o pensamento, sentir e expressar o sentimento, querer e efetivar a vontade; (ii) realizar propósitos mediante ação ou omissão.

O Estado moderno compõe-se de povo, território, patrimônio, governo e finalidade. Tais elementos constituintes (demográfico, geográfico, econômico, cratológico e teleológico) estão coordenados por regras morais e jurídicas segundo o propósito do legislador. Esse legislador pode ser um indivíduo (rei, ditador) ou uma entidade coletiva (partido político, classe social, nação). A ordem posta pelo legislador pode ser democrática ou autocrática. A ordem democrática tem por princípio: a igualdade, a solidariedade e a dignidade da pessoa natural; e por objetivo: a livre expressão das potencialidades físicas, intelectuais e espirituais dos indivíduos e o desenvolvimento político, econômico e social da nação. A democracia evolui da forma de governo para forma de vida na família, na escola, no sindicato, nas associações civis, quando os membros das respectivas comunidades participam das decisões, livres de coerção na busca do consenso. A democracia pode ser caricata, mera palavra para embelezar discurso de demagogo, disfarce para práticas ditatoriais e privilégios oligárquicos.

Na democracia de fachada, parlamentares, chefes de governo, auxiliares do alto escalão e setores privados celebram parcerias fora dos parâmetros da honestidade e da decência. No Brasil, tal desvirtuamento notou-se durante os governos Cardoso (1995/2002) e Silva (2003/2010). A rede de computadores, por exemplo, noticiou a evolução patrimonial do filho do presidente da república, no governo Silva. Depois que o pai assumiu o cargo, o filho, modesto empregado do jardim zoológico, montou bem sucedida empresa; adquiriu uma fazenda no valor de 100 milhões de reais e outra no valor de 40 milhões de reais, associado ao publicitário Duda Mendonça e financista Daniel Dantas. O governo Silva utilizou cartões corporativos para cobrir despesas particulares e saques em dinheiro, nomeou sem concurso dezenas de milhares de pessoas para cargos públicos (aparelhamento partidário da administração pública) e criou dezenas de ministérios para atender à clientela. Em veraz república democrática, a canalha é removida do poder. No Brasil, isto ficou difícil. Os partidos que sustentam o governo beneficiam-se dos desmandos. Aos partidos da oposição falta autoridade moral para reagir, pois quando ocuparam o governo, cometeram os mesmos desatinos. À parcela decente da nação restam as alternativas: (i) conformar-se com a bandalheira; (ii) negar voto aos bandalhos; (iii) rebelar-se mediante desobediência civil; (iv) revoltar-se mediante movimento armado.

O Estado, como pessoa jurídica de direito público, apresenta-se em juízo através do seu elemento cratológico (governo). A atuação do governo no processo judicial nem sempre é legítima. Ao nível do estelionato, o governo protela o cumprimento das obrigações do Estado. A protelação do pagamento dos precatórios serve de exemplo. O precatório corporifica ordem de pagamento expedida pelos tribunais fundada em sentença judicial transitada em julgado. O credor não é o tribunal e sim aquele que venceu litígio contra o Estado. Encerrado o litígio depois de trâmites demorados, o credor é surpreendido por mais um entrave: o calote oficial. Norma desse tipo carece de licitude, eis que resulta do abuso de poder. Os representantes do povo são eleitos para atuar segundo os princípios da moral e do direito: viver honestamente; não lesar o próximo; dar a cada um, o que lhe é devido (honeste vivere, alterum non laedere, cuique suum tribuere). O Estado deve cumprir as suas obrigações, tanto na esfera nacional como na internacional. O ato unilateral do governo tendente a protelar, modificar ou extinguir a obrigação do Estado, sem satisfazê-la, entra na categoria dos atos ilícitos. A segurança e a propriedade já vinham protegidas contra atos abusivos do governo desde a declaração de direitos francesa de 1789 e da ONU de 1948. O legislador constituinte brasileiro afinou-se com essa herança cultural (a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; ninguém será privado dos seus bens sem o devido processo legal).

Há litígios em que o Estado funciona como biombo para ocultar condutas imorais. Os agentes da esperteza aparecem como defensores do bem público. Decisões judiciais escapam à lógica e ao direito para atender interesses particulares reclamados em nome do Estado. Ilustra essa realidade, o caso do Parque Lage, espaço de preservação ambiental situado no Jardim Botânico, bairro da zona sul da cidade do Rio de Janeiro, que integra o patrimônio federal sob administração do IBAMA, incluindo conjunto arquitetônico de valor artístico e cultural. Ali se instalou uma escola de artes visuais (EAV) cujos freqüentadores depredaram o palacete, poluíram as águas, maltrataram a floresta e os jardins. O IBDF (atual IBAMA) propôs e venceu ação de reintegração de posse contra o Estado do Rio de Janeiro (RJ).

Na execução da sentença (despejo dos ocupantes do palacete) o RJ obteve decreto do presidente Collor cedendo o uso do conjunto arquitetônico por 10 anos. O decreto afrontou a coisa julgada e deu guarida aos predadores e poluidores. Estes fundaram uma associação (AMEAV) para explorar comercialmente o Parque Lage, porque a escola (EAV) não podia fazê-lo diretamente em face da proibição contida no contrato de cessão firmado entre o RJ e a União Federal (UF). A atividade predatória e poluente continuou. O parque foi alugado para filmagens, apresentações teatrais, espetáculos de música popular e festas que varavam a madrugada, som alto, luzes e foguetório, em completa e frontal oposição à conduta exigida para uma área em que se devia preservar a flora e a fauna. Isto sem falar da perturbação do sossego da vizinhança. Após uma dessas festas, apareceu um cadáver na piscina do palacete.

A associação de moradores (AMJB) solicitou providências ao Ministério Público estadual (MP) que logo propôs ação civil pública contra o RJ, na justiça federal, pleiteando retomada do Parque Lage para a UF e apuração das responsabilidades. A AMJB entrou como assistente do MP na referida ação. O Ministério Público Federal (MPF) propôs outra ação civil pública para retomar apenas a floresta e os jardins, posto que só o conjunto arquitetônico fora objeto da cessão. O juiz acolheu o pedido do MPF e reintegrou a UF na posse da floresta e dos jardins. O RJ conformou-se com a sentença; contentou-se com a posse do conjunto arquitetônico. O MP e a AMJB apelaram da sentença. As apelações receberam parecer favorável da Procuradoria da República. Os autos do processo adormeceram no tribunal federal da região.

Os administradores da escola (EAV) e da associação dos amigos da escola (AMEAV) providenciaram projeto de restauro do palacete. Um dos sócios do escritório de arquitetura autor do projeto presidia o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, órgão federal competente para aprovar esse tipo de projeto. A obra foi orçada em torno de 2 milhões de reais, na época, dinheiro suficiente para construir um novo palacete. A fim de lograr aprovação de verbas no Ministério da Cultura, pelos favores da lei do mecenato, constou do projeto que a restauração era da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. A falsidade do nome visava a um efeito jurídico específico. Formalmente, pretendia-se restaurar uma escola de arte, o que dispensava licitação pública. Materialmente, o objeto da restauração era o prédio da UF, o que exigia licitação pública. O Parque Lage não é – e não tem – uma escola; é um imóvel tombado, parcialmente cedido pela UF ao RJ para funcionamento de uma escola de arte no palacete. As obras de reforma do prédio exigiam licitação pública, o que foi contornado por aquele expediente de esperteza.

A associação de moradores (AMJB) representou ao MP contra os responsáveis por essa fraude. Instaurou-se processo criminal. Em represália, o RJ e a AMEAV promoveram ação de reintegração na posse da área de 30m², ocupada pela AMJB no interior do Parque Lage. O Secretário de Cultura movimentou-se junto ao tribunal de justiça para concessão liminar do pleito. O RJ e a AMEAV venceram a ação sem que a decisão judicial explicasse a possibilidade lógica e jurídica de reintegrar na posse da minúscula área quem nunca a detivera. A reintegração supõe posse anterior perdida, o que não era o caso da EAV e da AMEAV. A injunção política superou a razão jurídica. A reintegração deferida pela justiça estadual, além de favorecer quem não era possuidor nem proprietário, contrariou interesse público. A AMJB é organização social sem fins lucrativos, que defende o patrimônio público, o meio ambiente e os interesses difusos da comunidade do Jardim Botânico, constituída de homens e mulheres das mais diferentes profissões e faixas etárias, que separam uma parte do seu tempo e de suas vidas para atender à coletividade. A AMJB foi despejada da sua sede histórica por haver exercido, com firmeza e determinação, a defesa do bem público e dos legítimos interesses da comunidade.

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