sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXXIV

Na França, com todas as despesas pagas pela Confederação Brasileira de Futebol - CBF, estiveram cerca de 30 desembargadores fluminenses para os jogos da copa do mundo de 1998. Um deles fora relator de um processo em que a CBF era parte. Nenhuma autoridade pública deve receber presentes em razão do cargo. A probidade é uma exigência constitucional. Sabe-se o efeito deletério que os presentes causam à saúde moral do agente político ou administrativo. Os jurisdicionados perdem a confiança em juízes que recebem favores e presentes.

As obras e os serviços contratados com terceiros são o grande manancial da corrupção na administração pública, ensejam enriquecimento de administradores e empresários, além de constituírem meio de retribuir ajuda financeira recebida em campanha eleitoral. A mania de suntuosidade nos administradores da coisa pública no Brasil vem de longe. Suas raízes não estão apenas na sobrevivência de costumes dos tempos coloniais, mas também na existência de governantes e burocratas vaidosos e desonestos que inventam esses projetos faraônicos como estrada para o desvio das verbas públicas e ilícito enriquecimento. O trono de ouro do africano Bokasa ilustra bem essa mania de grandeza dos governantes de países pobres. Na construção do edifício do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo foram enterrados 200 milhões de dólares. Constatou-se faturamento excessivo e desvio de verbas, exemplo da mania de suntuosidade acoplada à corrupção.

O ex-presidente daquele tribunal ostentava padrão de vida milionário: automóveis importados, casas luxuosas no Brasil e nos EUA, patrimônio incompatível com os subsídios de magistrado. Consta dos trabalhos da comissão parlamentar de inquérito que, mesmo aposentado, o ex-presidente prosseguiu na direção do setor de obras do tribunal. Processado criminalmente, ele foi condenado. Parte do dinheiro foi recuperada; a outra parte sumiu como soe acontecer nesses casos. No caso Georgina, o dinheiro do INSS sumiu apesar de ela ter sido processada e presa. Em assalto a banco, quando os assaltantes são presos, parte do dinheiro sempre desaparece. Fatos como esses depõem contra a imagem de honestidade e austeridade que se espera das autoridades em geral. O povo perde a confiança no governo e nos responsáveis pela segurança pública. A moderação, a simplicidade e a funcionalidade devem orientar as despesas, as obras e os serviços contratados e executados, ainda mais se considerados os graves problemas sociais e econômicos que se abatem sobre o Brasil nesta primeira década do século XXI.

O desvio de dinheiro da previdência social no Estado do Rio de Janeiro foi um escândalo que varou as fronteiras do País. Os fraudadores (juízes de direito, serventuários, procuradores) participavam do esquema nas ações de acidente do trabalho, mediante indenizações fixadas em altíssimos valores. Os processos judiciais, muitas vezes, tentam os juízes pelas altas quantias em disputa e pelo poder do magistrado na direção da causa. Alguns sucumbem à tentação e se associam às partes e seus patronos, homologando cálculos absurdos dos quais recebem uma parcela, como aconteceu no caso das fraudes contra o INSS.

No segundo semestre de 1999, um juiz de direito do Estado de Mato Grosso foi assassinado e seu corpo carbonizado. O tribunal daquele Estado promovia sindicância sobre atividades ilícitas do referido magistrado. Por sua vez, como noticiaram os jornais e as emissoras de televisão, o juiz distribuíra volumoso dossiê ao Supremo Tribunal Federal e a uma comissão parlamentar de inquérito do Senado Federal, sobre a corrupção no tribunal de justiça daquele Estado. Havia fogo cruzado: o magistrado de um lado e o tribunal de outro. As denúncias do magistrado só tomaram algum impulso depois do seu brutal assassinato. Episódios como esse revelam uma preocupante insensibilidade moral rondando o Poder Judiciário e o aparelho de segurança do Estado. Nenhum fator agravaria mais a miséria social e econômica da maioria dos brasileiros, do que a miséria moral dos seus juízes.

O povo reagiu à alienação da Companhia Vale do Rio Doce ao setor privado. Inúmeras ações judiciais foram propostas em quase todos os Estados da federação brasileira. Pelo menos, uma delas, por sua forma e conteúdo, proposta por notáveis juristas de São Paulo, tinha grande probabilidade de êxito. Entretanto, o Poder Executivo federal moveu-se com eficiência, conseguiu trancar as demandas e realizar o leilão, pondo à mostra um singular desvirtuamento da noção de serviço público e de interesse nacional. A União propôs medida judicial perante o Superior Tribunal de Justiça para que todas as ações fossem reunidas no juízo federal que houvesse despachado em primeiro lugar. Deferida a medida, nunca mais a população brasileira teve notícia das ações. O presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, parte interessada nos processos, entrevistou-se com o presidente do Superior Tribunal de Justiça a fim de expor os motivos pelos quais o governo entendia necessário o leilão e a urgência de cassar todas as liminares concedidas pelos magistrados de primeiro grau. Teve êxito na empreitada.

Os magistrados das altas cortes de justiça, talvez por dever de gratidão, posto que nomeados pelo Presidente da República, raramente decidem contra o governo e a favor do povo nas grandes questões nacionais. O STJ, por exemplo, no caso dos índices de correção monetária de um mesmo período, usou dois pesos e duas medidas: contra o povo (poupadores e mutuários) e a favor dos bancos. Para corrigir os créditos das instituições bancárias, decidiu que o índice era de 80%. Para corrigir os saldos das cadernetas de poupança, decidiu que o índice era de 40%. A Companhia Vale do Rio Doce, empresa das mais rentáveis do mundo, de notável importância estratégica, construída com o sacrifício de gerações de brasileiros, foi alienada a preço vil, sem que as ações populares propostas com o objetivo de impedir esse péssimo e suspeito negócio, recebessem o tratamento célere e atencioso que a sua fonte soberana exigia. A chance de a empresa ser reintegrada ao patrimônio do povo brasileiro por via judicial tornou-se remota. A via política da encampação por um governo honrado e defensor do interesse nacional se afigura improvável. Os costumes políticos vigentes no Brasil não autorizam um prognóstico otimista antes de um combate sério e efetivo à endêmica corrupção que penetra o tecido social e o atrofia. O escândalo no governo Silva (2005) reflete essa miséria moral.

A decisão do tribunal do júri no caso das mortes em Eldorado dos Carajás, no Estado do Pará, acolhendo a tese da legítima defesa e absolvendo os réus, agitou o país, forneceu farto material à imprensa e ensejou a exploração demagógica a alguns políticos profissionais. Não faltaram os mais exaltados que, ignorando a estrutura e o funcionamento do tribunal do júri, censuraram a magistratura pela impunidade dos réus. As partes, as autoridades, a imprensa e a população local sabem, nesse triste episódio, quem efetuou os disparos da arma de fogo, quem mandou atirar e quem morreu. Não há controvérsia sobre a autoria e a materialidade do delito. A tese dos réus é a da legítima defesa. Após apreciarem a prova e ouvirem o promotor de justiça e o advogado de defesa, os jurados decidiram, por 4 votos a 3, que os réus repeliram agressão atual e injusta, usando moderadamente os meios a tanto necessários. Essa decisão é soberana. O tribunal de justiça não pode modificá-la, mas tão somente mandar os réus a novo julgamento, uma única vez, na forma da lei. Com tal propósito, o ministério público apelou da sentença. Os jurados constituem a parcela do povo que exerce a soberania diretamente. Desse modo, o povo distribui justiça sem vinculação a critérios técnicos de natureza jurídica, salvo as normas de caráter processual. Cada jurado guia-se por sua consciência, seu senso de justiça e sua particular visão de mundo. A decisão dos jurados, no caso em tela, foi proferida no devido processo legal. Houve debate judicial (princípio do contraditório), produção de prova (princípio da ampla defesa), tribunal competente (princípio do juiz natural), atos processuais públicos (princípio da publicidade) e aplicação da lei penal (princípio da reserva legal).

A opinião da imprensa e dos políticos quanto à justiça ou injustiça do julgamento não muda o resultado do processo judicial. O que vale e importa é a vontade soberana do povo, manifestada pelo corpo de jurados. Se fosse para atender à opinião pública – aliás, sempre volúvel – não haveria necessidade de um processo judicial. Fundado no inquérito policial e nos comentários dos jornalistas e dos demagogos, o magistrado aplicaria a pena e mandaria os réus para a penitenciária, sem incomodar a população para vir compor o tribunal do júri. O debate judicial seria dispensável assim como a presença do promotor e do advogado.

A prova áudio-visual apresentada em sessão de julgamento, sem a presença e os esclarecimentos de um perito, pode conduzir a equívocos. Segundo o exame da fita de vídeo feito por um perito carioca e explicado em emissora de televisão, o primeiro disparo partiu da arma de um soldado e não da arma do agricultor. Se disso fossem alertados os jurados na sessão de julgamento, o resultado poderia ser outro. Mas, ainda que o primeiro tiro partisse do agricultor, as imagens mostram excesso na conduta dos militares. Os soldados, numerosos e com armas de fogo, reagiram com desproporcional violência contra um campônio armado de revólver e contra os demais armados de paus e foices. Pelo menos, foi o que se viu da fita exibida na televisão. Diante disso, um novo julgamento estaria autorizado por razão técnica: a sentença teria contrariado a prova dos autos. A decisão final cabe aos jurados e deve ser acatada por todos os cidadãos como imperativo da consciência democrática.

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