sexta-feira, 30 de outubro de 2009

REMINISCÊNCIAS

REMINISCÊNCIAS - XXIX

Na capital do Rio de Janeiro, primeiro semestre de 1990, foi instaurado inquérito policial na circunscrição da Barra da Tijuca, a pedido de adquirentes de imóveis, a fim de apurar a responsabilidade criminal da diretoria da Construtora Encol. Motivo: propaganda enganosa. Acompanhei os trâmites do inquérito na função de advogado das vítimas. Apesar da prova oral e documental suficiente para a formulação da denúncia, o ministério público pediu a baixa do inquérito à delegacia. Nada impedia a propositura da ação penal, pois as diligências solicitadas pelo promotor de justiça podiam ser realizadas no curso da instrução processual. Se o ministério público houvesse proposto a ação penal naquela data, o escândalo certamente não teria as proporções reveladas 8 anos depois. O Banco do Brasil e a Caixa Econômica não teriam sofrido o prejuízo, noticiado pela imprensa, de 400 milhões de dólares. Bastava o senso comum para perceber que a propaganda enganosa supõe uma conduta e uma mentalidade voltadas para a fraude, para o estelionato, para o engodo, que retiram do seu portador, a credibilidade e o bom conceito.

Quando a questão criminal posta por particulares, mediante representação, envolve aspectos civis de crédito, nota-se alguma resistência do ministério público no tocante à instauração de inquérito policial e à propositura da ação penal. Paira a suspeita de que a vítima está pouco interessada na realização da justiça penal e bem mais interessada em utilizar a instituição e o aparelho policial para constranger o devedor ao pagamento da dívida. A intenção da vítima seria utilizar-se do processo penal em proveito particular. A partir desse entendimento, o aspecto criminal da conduta do devedor fica sem apuração. A impunidade é conseqüência. Reforça-se a fama do Brasil de ser o paraíso dos estelionatários e dos criminosos de colarinho branco.

As vítimas, em ação judicial proposta contra a Construtora Encol, pleitearam perdas e danos na esfera cível. O Judiciário fluminense declarou a responsabilidade civil da empresa pelos danos decorrentes da propaganda enganosa. A decisão condenatória deixou de ser executada em virtude dos recursos pendentes no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça. Isto implicou mais alguns anos de espera além dos 7 anos esgotados na demanda judicial. Enquanto isso, a Encol obtinha empréstimos vultosos junto às instituições governamentais. Depois, pediu e obteve concordata, mas não cumpriu as condições legais e teve a sua falência decretada na comarca de Goiânia/GO. Os credores quirografários, inclusive os que venceram a mencionada demanda judicial, habilitaram os seus créditos no processo de falência, mas dificilmente os receberão. Conforme os números publicados na imprensa, o patrimônio da falida – 400 milhões de reais – é insuficiente para cobrir os débitos da empresa, superiores a 2 bilhões de reais. Não há notícia de redução da fortuna dos diretores da falida. Parece mais um caso da fórmula padrão: empresa falida + credores frustrados = sócios enriquecidos.

Se o Banco do Brasil, a Caixa Econômica e as autoridades públicas houvessem considerado a situação da Encol há mais tempo, quando havia inquérito e centenas de ações judiciais em trâmites pela justiça brasileira, o prejuízo patrimonial do público e das instituições estatais teria sido menor ou, até, evitado. Além da conduta dos diretores da Encol, contribuíram para o dano: a incúria, a negligência e, quiçá, a corrupção dos agentes do Estado e do setor financeiro.

Na vida forense há exemplos de demandas em que o credor sofre prejuízo porque ao findar a ação judicial o devedor já não existe mais ou se tornou insolvente, sem patrimônio suficiente para responder pelo pagamento. Inteirados dessa realidade, há credores que deixam de recorrer ao Judiciário para evitar gastos maiores sem perspectiva de retorno positivo. Essa realidade facilita, também, acordos em que o credor prefere perder parte do seu crédito, a aguardar o desfecho de uma ação judicial em longínquo e incerto futuro. O útil imediato substitui o justo. Apesar de ser um conjunto de princípios e regras que, sob o signo da justiça, disciplina o poder e a liberdade, o direito é aplicado segundo a necessidade, utilidade ou interesse das partes. A justiça é sacrificada no altar do materialismo e no rito da urgência.

No acidente aéreo ocorrido em outubro de 1996, com o avião da TAM, logo após a decolagem do aeroporto de Congonhas, morreram os passageiros, os tripulantes e pedestres. O acidente comoveu a nação e repercutiu internacionalmente. Do ponto de vista jurídico, apresentou situações contratuais: (i) de transporte, entre a empresa e os passageiros; (ii) de trabalho, entre a empresa e os tripulantes; (iii) de compra e venda, locação ou comodato entre a empresa e os fabricantes do avião. Além disso, gerou relação extracontratual entre a empresa e as vítimas que estavam em terra, cujas casas foram total ou parcialmente destruídas.

Conseqüência dessas distinções é a independência entre as ações judiciais. No tocante às ações judiciais fundadas no contrato de transporte, a conexão para efeitos processuais é facultativa. O juiz examina a conveniência de reunir as ações conexas. Tendo em vista a autonomia jurisdicional dos Estados federados, as ações com trâmites em diferentes unidades da federação devem, em princípio, permanecer no foro em que foram propostas. Os parentes das vítimas, domiciliados em Estados diferentes, não estavam obrigados a propor ação judicial em São Paulo, onde fica a sede da TAM. O juiz de direito da comarca de Londrina, no Estado do Paraná, se declarou competente para conhecer, processar e julgar ação proposta pela mãe de uma das vítimas do desastre, residente naquela cidade. O Tribunal de Justiça do Estado do Paraná confirmou a decisão do juiz de Londrina.

A título de indenização, a companhia seguradora da TAM ofereceu R$150.000,00 aos parentes dos passageiros mortos no acidente. A maioria não aceitou a oferta e procurou a tutela jurisdicional. Isso foi proveitoso à empresa e à sua seguradora, que se beneficiaram da morosidade dos trâmites processuais, protelando o cumprimento das suas obrigações, eis que a companhia seguradora não depositou em juízo a quantia por ela mesma oferecida.

A maioria dos familiares das vítimas do acidente fundou uma associação e buscou indenização nos tribunais dos Estados Unidos da América do Norte (EUA). O motivo dessa escolha está nas quantias irrisórias que costumam ser fixadas pelos juízes brasileiros em pedidos de indenização. Na esperança de dias melhores, há brasileiros e mexicanos que entram nos EUA. Assim, também, na esperança de indenizações condignas, brasileiros recorrem aos tribunais do tio Sam. Até o Ministro da Saúde, no primeiro semestre de 1999, manifestou a intenção de buscar justiça nos EUA para pleitear dos fabricantes de cigarros, indenização pelos gastos com o tratamento das vítimas do tabagismo (muito embora haja cigarros fabricados no Brasil).

Nos EUA, as vítimas (quando sobrevivem) ou seus parentes, recebem milhões de dólares de indenização. No Brasil, a indenização é arbitrada em míseros salários mínimos, apesar de o lucro das empresas e das seguradoras ser igual ou maior do que o auferido por suas congêneres nos países setentrionais. Isto faz pensar que os incentivos para empresas industriais e comerciais estrangeiras se instalarem no Brasil, além do baixo custo da mão-de-obra, das facilidades tributárias e das cessões imobiliárias, incluem um Judiciário acanhado, amarrado por tabelas e legislação facciosa ditadas pelos representantes dessa casta privilegiada em detrimento da dignidade dos cidadãos brasileiros.

Desde a publicação do código de proteção e defesa do consumidor (1990) os juízes brasileiros não estão mais adstritos a tabelamentos e critérios fixados em legislação anterior à Constituição Federal de 1988. O valor das indenizações por danos físicos e morais decorrentes da relação de consumo pode ser arbitrado pelo magistrado com base na prova dos autos e nos critérios gerais adotados pela doutrina e pela jurisprudência, tais como: condições sociais e econômicas das partes, extensão e repercussão do dano, natureza do bem ofendido, circunstâncias de tempo e lugar.

Após ter sido vencida no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, a TAM resolveu pagar à minha cliente quantia fixada em acordo escrito. As partes desistiram dos recursos ao Superior Tribunal de Justiça. O processo de execução não foi necessário. Mesmo abreviados os trâmites, o processo durou seis anos.

No centro de Curitiba, capital do Estado do Paraná, existe um logradouro público denominado “Rua 24 Horas”, próximo à praça general Osório. A empresa publica que contratou a obra deixou de pagar a última parcela à firma de engenharia que venceu a concorrência e executou o projeto. Segundo o titular da firma construtora, o diretor da empresa pública exigiu certa importância em dinheiro para liberar a verba. Como a construtora se negou a pagar, a empresa pública alegou que a obra ficara inacabada e não liberou a verba. No entanto, a obra fora inaugurada pelo prefeito, com discurso e foguetório; comerciantes ali montaram lojas; o público freqüentava a Rua 24 Horas normalmente.

A firma construtora se viu na contingência de propor ação de cobrança. Nos trâmites processuais foi realizada prova pericial. Verificou-se que a obra fora entregue perfeita e acabada. A empresa pública foi condenada a pagar a parcela faltante com juros, correção monetária, custas processuais e honorários advocatícios. Pelo tempo que durou o processo, a empresa construtora ficou sem o capital, o que prejudicou o seu negócio. Além disso, não conseguiu mais vencer concorrência alguma naquela cidade. O seu nome fora lançado no livro negro das licitações.

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