sexta-feira, 16 de outubro de 2009

REMINISCÊNCIAS

XXVII

O saudoso desembargador Cláudio Vianna de Lima (apesar do mesmo sobrenome não havia parentesco algum entre nós) incluía-me entre os fundadores da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ, da qual ele era o diretor. Eu havia atendido ao chamado para integrar o corpo docente originário e ministrei a primeira aula curricular à primeira turma de bacharéis estagiários da EMERJ (1990). A escola não tinha local fixo. Vagávamos de um lugar a outro, ocupando salas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na Associação Comercial, nas câmaras do Tribunal de Justiça, até o espaço definitivo no 4º andar do prédio do forum central, na confluência da Avenida Antonio Carlos com a Rua Erasmo Braga (centro da cidade do Rio de Janeiro). A partir daí, a escola foi se ampliando, ganhando biblioteca, auditórios e departamentos. Tornou-se um centro de referência do ensino jurídico. O número de funcionários aumentou. O método de ensino adotado era igual ao da Escola Superior de Guerra, com o qual eu me familiarizara quando, em 1974, fizera o curso da associação dos diplomados da citada escola (ADESG).

Lecionei Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional durante oito anos. Revisei as lições e as reuni em livro (Teoria do Estado e da Constituição, Rio, Freitas Bastos, 1998). A equipe dessas disciplinas era formada pelo desembargador José Joaquim da Fonseca Passos (coordenador), juiz Hélio Assunção e eu. Fonseca Passos comentava que Hélio e eu éramos rigorosos na correção das provas. Grande era o nosso esforço visando a um ensino de alto nível nos seminários, nos trabalhos de grupo e análises de casos. Justo, pois, que esperássemos boas provas realizadas pelos estagiários. Testemunhei a fina educação, bondade, humildade e cultura de Fonseca Passos por diversas vezes. Em uma delas, na saída da escola, com semblante cerrado, ele me perguntou: “Lima, o que você acha central em nossa disciplina, o poder ou o direito?” Sem vacilar, respondi: “O poder. Tudo gira em função do poder: a conquista, o exercício, a justificativa. O direito constitucional é a expressão civilizada do poder”. Ele sorri. Com alívio estampado no rosto, diz: “Eu também penso assim”. A seguir, declara: “Lima, você é o meu alter ego”.

Jussara e eu, doutor Carrano e a esposa Djanir com filhos e genros (já me referi a eles em outro capítulo) estávamos reunidos numa pizzaria do Juvevê, bairro de Curitiba, quando chega o Gilberto Fontoura, amigo do tempo de solteiro, radialista e apresentador de programa esportivo na TV. Há muitos anos não nos víamos. Ele vem ao meu encontro, me abraça e chora emocionado. O irmão dele, mais novo, olhando para mim, assim se pronuncia: “não pense que você está com essa bola toda”. O despeito o impediu de ver que não fora a saudade da minha pessoa a geratriz das lágrimas de Gilberto e sim os tempos felizes da mocidade que a minha presença evocara. Ao se despedir, o irmão do Gilberto desculpou-se. Com bola ou sem bola, encontros com forte carga emocional têm sido constantes em minha vida.

Tornei a ouvir aquela expressão, 15 anos depois. No corredor da escola (EMERJ) encontro o juiz Nagib Slaibi Filho. Mais novo do que eu, mais alto em estatura e soberba, olhando-me de cima para baixo, diz: “Lima, corre por aí que você é melhor do que Alfredo Buzaid” (jurista brasileiro); de olhos semicerrados, agitando lateralmente o indicador da mão direita, braço e antebraço em ângulo de 90 graus em minha direção, escarrou: “mas eu acho que você não está com essa bola toda.”

Respondi com um gesto de indiferença, abrindo os braços e encolhendo os ombros. Eu desconhecia aquela fama. Não me impressionei ao dela tomar conhecimento naquele instante, porque mantenho a vaidade sob rédeas. Eu estava aposentado; se eu estivesse na judicatura, certamente o Nagib não teria aquela petulância.

Tracei um paralelo entre a atitude do Jorge Magalhães (colega de concurso e de toga que me chamara de burro por eu trabalhar até de madrugada) a atitude do irmão do Gilberto Fontoura e a atitude do Nagib Slaibi Filho. Havia algo de comum nessas atitudes. Acho que eles teriam uma síncope se ouvissem a declaração da juíza Denise Frossard feita ao Amin e à Vânia, fraternos amigos de Minas Gerais (Ubá e Visconde do Rio Branco). Recebi a visita deles na semana da pátria (Penedo/Itatiaia, 2009). Acompanhava-os a amiga Stela (agora amiga da Jussara e minha também). Passamos um dia alegre e feliz. Eles me contaram que Denise referia-se a mim como o maior constitucionalista brasileiro da atualidade.

O bondoso e exagerado conceito emitido por Denise provém da gratidão, sentimento nobre e raro hodiernamente. Eu lecionava direito constitucional no CEPAD, onde ela se preparou para o concurso à magistratura. Certa ocasião, quando almoçávamos aqui em Penedo, Denise comentou que a sua melhor nota no concurso foi em direito constitucional. Enquanto ela exerceu o mandato de deputada federal eu a assessorei com pareceres escritos sobre propostas de emenda à Constituição, projetos de lei e resoluções; elaborei relatórios, propostas e projetos; respondi a consultas por telefone e por escrito e nos reunimos aqui em Penedo. Participei do início da campanha de Denise para governadora do Estado do Rio de Janeiro. Como advogado, formulei defesa perante a justiça eleitoral. Um assessor jurídico do partido, sem me consultar, modificou a petição por mim elaborada e assinada. Ao saber disso, passei-lhe uma descompostura, lembrando-o da ética profissional. Afastei-me da campanha.

Aquelas pessoas também ficariam incomodadas se lhes chegassem aos ouvidos as boas referências de que fui alvo como juiz, professor e escritor. Como fontes dessas boas referências, citarei alguns desembargadores para evitar a indeterminação (embora advogados e membros do ministério público tenham me honrado com seus encômios): Olavo Tostes, em voto proferido em processo judicial, sobre o teor da sentença de minha lavra; Luis Fernando Whitaker da Cunha, ao prefaciar o livro “Poder Constituinte e Constituição”; Cláudio Vianna de Lima, ao prefaciar o livro “Teoria do Estado e da Constituição”; Humberto Manes e Sérgio Cavalieri Filho, quando ocupei a tribuna das suas respectivas câmaras cíveis (ambos presidiram o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro). Os testemunhos espontâneos indicam que há brechas na conspiração do silêncio.

O desembargador Cláudio Vianna de Lima estranhou a ausência, no meu livro Teoria do Estado e da Constituição, do prefácio por ele redigido; reconheceu trechos na orelha do livro. Verifiquei que do conselho editorial da Freitas Bastos constava o nome do Jorge Magalhães. Aí pode estar o motivo da exclusão do prefácio laudatório à minha pessoa como cidadão, juiz e professor. Jorge nutria rancor e antipatia pelo desembargador Cláudio porque, no devido processo, o desembargador votara pelo seu afastamento do cargo de juiz de direito.

Em sessão de estudos na EMERJ, discordei de certa colocação atribuída pelos estagiários ao jurista português Canotilho. Contaram-me, depois, que o juiz Nagib Slaibi Filho era admirador e amigo desse jurista. Estagiária em pé, com a mão direita acima da cabeça, exibe o livro de Canotilho, diz o preço e pergunta o que devia fazer. Resisti a uma chistosa resposta. Disse-lhe que o aproveitasse como lhe conviesse. A seguir, outra estagiária pronuncia-se de modo histérico, agressivo, para negar a bilateralidade da norma jurídica, invocando lição do jurista português. Mal educada, a moça parecia uma onça prestes a dar o bote. Felizmente, bastou a força moral para domá-la. Segundo fórmula do jurista mexicano Eduardo Garcia Maynez, por mim adotada, as normas jurídicas são bilaterais porque impõem deveres correlativos de faculdades ou concedem direitos correlativos de obrigações (Introduccion al Estudio del Derecho. México, Porrúa, 1977, p. 15). Giorgio Del Vecchio, jurista italiano, inclui a bilateralidade entre as características da norma jurídica (bilateralidade, generalidade, imperatividade e coercibilidade) in Lições de Filosofia do Direito, 5ª edição. Coimbra, Armênio Amado, 1979, p. 376.

A bilateralidade atributiva da norma jurídica também era defendida por Miguel Reale, jurista brasileiro, de quem fui discípulo no curso de especialização em filosofia e sociologia jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (1968). A minha reserva em relação ao verborrágico professor português está na lição de Georges Gurvitch, citada por Reale: “a interdependência dos direitos e dos deveres pode receber expressões diferentes: pode afirmar-se como coordenadora (pretensões e deveres recíprocos entre sujeitos ou grupos separados), como subordinadora (pretensões e deveres correspondentes entre sujeitos dirigentes e comunidade obrigada) e como integrante (pretensões e deveres do todo e de seus membros, interpenetrando-se e afirmando-se em comunhão, pois a interdependência aqui se intensifica até a fusão parcial). Mas em todos os casos é um sistema, uma ordem de regras imperativo-atributivas que se estabelece na base do Direito” (Reale, Miguel. Filosofia do Direito, 6ª edição. São Paulo. Saraiva. 1972. 2º volume, p. 612).

Depois de quase uma década, o desembargador Cláudio deixou a direção da escola e eu o magistério. Era a renovação do corpo docente da EMERJ, da direção e do método de ensino (1999). A partir de 2006, passei a enviar artigos à revista EMERJ: “Crise da Justiça” (nº 36); “Tutela Jurisdicional” (nº 37); “Constitucionalismo no Brasil” em quatro partes (nº 39, 41, 42 e 43). Cumpri a promessa de contribuir para a revista com artigos da minha lavra, promessa esta que eu fizera ao meu colega de toga e de concurso, desembargador Décio Xavier Gama, coordenador editorial.
Rememorando esses fatos, percebo a universalidade desse fenômeno social: o ser humano incluído no mesmo processo de obsolescência das máquinas; a fusão do processo natural com o processo artificial. Todavia, o desgaste do produto industrial e o desgaste do ser vivo não consomem tempo igual. No que tange às instituições, a mudança pode ocorrer sem utilidade, sem necessidade, ou sem visar ao bem comum. Há, por exemplo, sucessão no governo da nação firmada na promessa de mudança sem que nada de substancial se altere. Por vezes, a mudança ocorre de fato, mas para piorar a situação anterior e/ou para escamotear o interesse público.

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