quinta-feira, 5 de agosto de 2021

MISTÉRIO CÓSMICO

“O mistério nunca passa de uma miragem, dissipa-se quando se tenta apreendê-lo”. [Simone de Beauvoir (1908-1986)]. 
Rompido o limite da certeza humana, abre-se espaço ao mistério. O que for impenetrável à razão pertence ao mistério e serve de insumo à imaginação, usina cerebral produtora de ideias e imagens que tanto podem ser reais como irreais. A superstição e a fantasia são produtos dessa faculdade humana. O que está fora da explicação e da compreensão humanas ingressa no terreno do mistério. A ignorância favorece o mistério e alicerça a fé. Em maior ou menor extensão, todos os humanos são ignorantes. Ninguém é onisciente. Quanto maior o saber, mais perceptível o tamanho da ignorância. 
Os humanos criam, conservam e derrubam tabus. O tabu integra a cultura humana, tanto a bárbara como a civilizada e consiste na irracional sacralidade e mandamental inviolabilidade de certas coisas, pessoas, costumes, regras, princípios, pensamentos e instituições. O tabu oculta significados quando há conteúdo nas palavras que o expressam. Palavras vazias não têm significado explícito ou implícito. Da linguagem do tabu constam proibições desprovidas de justificação racional, censuras fincadas na superstição e em falsas crenças mantidas por tradição no seio da tribo, da cidade, da nação. 
No tabu, o sentimento se sobrepõe à razão e enseja o fanatismo. Para a parcela anglo-saxônica do povo estadunidense, por exemplo, a Constituição jurídica e política do estado é tabu, produto não só da necessidade e do contributo da razão como também (i) da consciência do valor histórico da independência política e (ii) do fervoroso sentimento de amor pela pátria e sua lei magna. A Constituição estadunidense está envolta numa aura de sacralidade. A violação intencional dos seus preceitos compara-se a um ato sacrílego, à blasfêmia, ao pecado mortal, além de tipificar crime grave. Para o povo francês, a tríade Liberdade + Igualdade + Fraternidade também é tabu, pois refere-se a valores considerados perenes e sagrados.
Certa vez, durante a ditadura militar, conversando com um jornalista estadunidense trabalhando no Brasil, eu perguntei se os EUA poderiam adotar regime político como o nosso. Ele empalideceu como se tivesse recebido uma bofetada. Depois de breve pausa, com a fisionomia grave, ele respondeu de forma lacônica e terminante: “Impossível”. 
O mistério está na base das doutrinas religiosas. Os preceitos e dogmas religiosos são tabus. A religião católica, por exemplo, inclui no seu mistério: [I] A existência de um deus providencial, poderoso, criador do céu e da terra, inclusive do primeiro casal gerador da humanidade [II] A santíssima trindade [III] A divinização de um ser humano [IV] O nascimento humano sem o sêmen do homem [V] A ressurreição sem aparelhos e sem procedimentos médicos [VI] A ascensão do corpo físico ao céu sem aeronave [VII] O caminhar sobre as águas de um lago sem afundar os pés [VIII] A virgindade de mulher casada mãe de 5 filhos [IX] A santificação de seres humanos. Essa religião tem como alicerces: [I] Os milagres, narrativas de coisas contrárias às leis da natureza, ao bom senso e à razão [II] As falsidades contidas nas escrituras “sagradas” e as resultantes da manipulação do clero [III] A exaltação da fé cega [IV] O desprezo pela boa razão. 
Para se manter na comunhão da igreja, o fiel deve obedecer, entre outros deveres, o de se abster do uso da razão em assuntos religiosos e o de acreditar que Moises conversava pessoalmente com deus sem lhe ver o rosto, mas, tão só as costas, que ele recebeu de deus os 10 mandamentos e poderes sobrenaturais e que, no uso desses poderes, cobriu o Egito de pragas e separou as águas do mar. O monoteísmo dos hebreus (judeus + israelitas) foi copiado do monoteísmo esotérico da elite do antigo Egito e do monoteísmo exotérico do faraó Aquenaton. Politeísta em sua origem, tal como os demais povos da antiguidade, o povo hebreu teve dificuldade de se adaptar ao monoteísmo que lhe foi imposto de cima para baixo, a fio de espada, por Moisés e seu grupo. Inúmeras vezes, esse povo recaiu no politeísmo. O seu deus Javé (ou Jeová) tinha atributos de deuses estrangeiros, assemelhava-se à poderosa entidade que Jesus, ao ser tentado, chamou de Satanás. Genocida, cruel, vingativo, belicista, Javé (ou Jeová) é o oposto do Pai Celestial, deus do amor, da paz e da misericórdia, que o profeta Jesus adorava. Os cristãos mantiveram o tabu monoteísta, porém, com um deus diferente do egípcio e do hebraico. Quanto ao politeísmo, prossegue na cultura oriental até os nossos dias.    

Bibliografia: será publicada após o sexto e último artigo desta serie.


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