sexta-feira, 11 de junho de 2021

DIREITO APLICADO - XV

No despertar da consciência jurídica em Roma, o direito despregou-se da religião e da moral. O que era homogêneo (religião + moral + direito) passou a ter espaço conceitual e metodológico próprio. 
O direito legislado era composto de leis, atos normativos do Senado (senatus consultos) e plebiscitos, todos visando a utilidade pública, as necessidades e os interesses do povo e do governo. Sob o império, sucessor da república romana, foram incluídas, no direito legislado, as constituições imperiais, leis ditadas pelos imperadores que se não confundem com as constituições modernas. Houve codificações: jus civile papirianum, lex duodecim tabulorum, jus flavianum, edictum perpetuum, codex gregorianus, codex hermogenianus, codex theodosianus, codex justinianeus. 
O direito não legislado era composto de editos dos pretores. dos trabalhos dos jurisconsultos e das decisões dos magistrados, fortes na perspectiva do útil, provocados pela necessidade de (i) dar segurança e certeza às relações sociais lato sensu (ii) prevenir ou solucionar controvérsias.
A partir da adoção do cristianismo como religião oficial do estado romano pelo imperador Constantino, o direito eclesiástico passou a conviver com o direito civil (330 d.C.). Desde o início da história romana, religião e política andaram juntas; religião pagã até Constantino, religião cristã depois de Constantino. As normas expressavam o senso de justiça dos romanos infiltradas de religiosidade, sob o prisma da utilidade. O estudo lógico e sistemático dessas normas conformou a doutrina jurídica. [O termo “ciência” só ingressou no vocabulário acadêmico no século XIX, quando algumas disciplinas se desprenderam da filosofia (física, química, biologia, lógica, psicologia, sociologia)]. 
A consciência, o senso de justiça, a razão prática e a vontade dos romanos constituíam a fonte subjetiva do direito; as normas não legisladas (consuetudinárias) e as normas legisladas (positivas) constituíam a fonte objetiva; as decisões judiciais e as obras dos jurisconsultos (jurisprudência) constituíam a fonte intelectual. 
As leis eram baixadas: [1] na monarquia, pelo rei e pelo senado [2] na república, pelos cônsules, senado e tribunos [3] no império, pelos imperadores, senado e tribunos. O senado representava a elite. Os tribunos representavam pequena parcela masculina da população. 
A mescla de dogmas religiosos, morais e jurídicos dificulta a tipificação das condutas e pode causar insegurança às pessoas comuns quanto às suas liberdades e aos seus bens. O conhecimento das leis pelo povo tem importância para a legitimidade e para a eficácia da ordem política e jurídica. Nas repúblicas antigas, as leis eram publicadas no momento da votação por assembleia de machos portadores de requisitos exclusivos (idade, patrimônio, posição social). Na idade média, as leis eram lidas em praça pública ou do púlpito das igrejas; depois da invenção da imprensa, publicadas em jornal impresso. 
A ninguém é lícito descumprir a lei alegando que a desconhece. Presume-se conhecida de todos a lei publicada. Essa presunção e outras, como prescrição, coisa julgada, inocência do réu, brotam da noção de probabilidade e integram o fenômeno jurídico por serem necessárias ao bem comum, à vigência e à eficácia das leis. Tais presunções incluem-se nas garantias fundamentais dos cidadãos e constam da ordem jurídica dos estados democráticos. Presume-se a inocência do réu até o advento de sentença penal condenatória proferida no devido processo jurídico. 
No Brasil, o limite dessa presunção era a sentença penal condenatória prolatada no primeiro grau de jurisdição. O réu só podia apelar da sentença depois de recolhido à prisão. Entretanto, desconfiado da honestidade e imparcialidade dos juízes – e a história recente lhe deu razão – o legislador constituinte de 1987/1988 ampliou esse limite nos seguintes termos: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (CR 5º, LVII). 
A violação dessa garantia constitucional por juízes e tribunais federais nas ações penais oriundas da operação denominada “lava-jato” realizada em Curitiba/PR (2014-2020) custou, a um dos réus, 580 dias de indevida e precipitada prisão. Tal violência foi possível graças à maliciosa “interpretação” dada pelos magistrados federais à referida garantia constitucional. Diziam: a presunção de inocência termina no segundo grau de jurisdição quando a decisão condenatória transita em julgado para o ministério público. [“Interpretação” = contra legem. Exemplo: a lei diz proibido e o juiz diz permitido servindo-se de argumentação falaciosa e atuando como legislador (chicana)]. 
A engenhosa “interpretação” ocultou o sentido amplo da norma que não distingue entre acusação e defesa no que concerne ao trânsito em julgado. Consoante máxima da hermenêutica jurídica, onde a lei não distingue não cabe ao intérprete distinguir. O engenho tinha o deliberado propósito de colocar o réu imediatamente sob um dos efeitos da sentença condenatória: perda dos direitos políticos. Objetivo: impedir o réu de disputar as eleições presidenciais de 2018. 
Em 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF), por duplo motivo, anulou os processos das ações penais contra esse réu: (1) parcialidade do juiz que os presidiu (2) incompetência do foro de Curitiba. O STF entendeu competente o foro de Brasília. Antes disto, ao corrigir aquela marota “interpretação”, o tribunal havia determinado a soltura do réu. Firmou o entendimento: o limite da presunção de inocência é o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Portanto, o recuo desse limite para o segundo grau de jurisdição só será possível por decisão de uma assembleia constituinte (CR 60, § 4º, IV). 


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