quarta-feira, 3 de outubro de 2018

REVOLUÇÃO OU GOLPE?

Brasil. 1964. Histórico episódio político. Conspiração + ação militar/civil. Revolução? Golpe? Questão terminológica debatida nos meios de comunicação social depois de o ministro Dias Toffoli, Presidente do Supremo Tribunal Federal, durante palestra na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (1º/10/2018), afirmar que prefere usar o termo “movimento” ao invés de “golpe” ou de “revolução” quando se refere ao histórico episódio de 1964.
Nenhuma idiossincrasia nessa opinião. Se com ela concordamos ou discordamos é outro departamento. Ademais, o ministro está amparado pela liberdade de expressão constitucionalmente assegurada a todos os brasileiros, inclusive aos que estão presos.  O ministro prefere um termo genérico para aquele episódio, talvez, com o intuito de evitar comprometimento ideológico e assim preservar imparcialidade e equidistância na sua judicatura. 
Quem situa-se à direita do espectro político, qualifica o citado episódio como vitoriosa e gloriosa revolução da qual participaram a camada média da população, políticos, empresários, banqueiros, grande imprensa, igreja católica, maçonaria. Quem situa-se à esquerda, qualifica-o como ilegal e ilegítimo golpe de estado prejudicial à soberania nacional, aos direitos fundamentais dos cidadãos, à justiça social, aos interesses da classe trabalhadora e da camada pobre da população. Quem fica equidistante das facções, mas não alheio, busca solução conciliatória. 
O vocábulo “revolução” tem um campo de aplicação maior do que o da expressão “golpe de estado”. Todavia, no âmbito político, os campos coincidem e os conceitos assemelham-se. A questão semântica não se resolve pelo mesodo saído da garganta do ministro, nem pela aristotélica justiça do meio termo. Tanto “revolução” como “golpe de estado” significam movimentos na esfera social e política, deslocamentos no tempo e no espaço de um estado a outro, de uma posição a outra, de uma ideia a outra, de um sistema a outro, de uma cosmovisão a outra, que importam mudança de regime e de governo. Nesse contexto, movimento funciona como gênero do qual revolução e golpe de estado são espécies.
“Golpe de estado” tem conotação depreciativa (odor da traição) enquanto “revolução”, desde a francesa de 1789, tem conotação heroica (perfume do denodo). Nesse tipo de episódio, o historiador e o sociólogo não conseguem isenção necessária à análise racional e científica. O objeto da interpretação provoca posicionamento, ainda que subliminar, em direção à esquerda ou à direita. Só na honesta exposição descritiva dos fatos, sem esforço hermenêutico, haverá alguma neutralidade.  
A revolução e o golpe têm o mesmo objetivo: assumir a direção do estado e da sociedade. Os dois movimentos tanto podem ocasionar derramamento de sangue como nenhuma gota derramar. A história fornece exemplos do modo pacífico e do modo violento desses dois movimentos, embora a violência física seja a mais frequente. A mescla civil, militar e religiosa é comum dada a natureza social e política desses movimentos. Os dois tipos contrariam a ordem jurídica vigente à época dos acontecimentos. Quando vencedor, o movimento revolucionário, ou o golpista, amolda a ordem jurídica à sua feição.
A diferença entre os dois movimentos está no ponto de partida. A revolução parte de fora e o golpe de estado parte de dentro do sistema político e social em vigor. Cada um desses dois movimentos tem ideais, sentimentos e aspirações. A conspiração que os precede pode acontecer em qualquer lugar e a qualquer tempo, sob a liderança de um indivíduo ou de um grupo de pessoas. Da revolução, ou do golpe, pode resultar tanto um regime autocrático como um regime democrático, segundo os propósitos dos revolucionários, ou dos golpistas, e a capacidade para implantar a nova ordem. 
Do movimento revolucionário civil/militar da década de 1930, no Brasil, resultou um governo autocrático que durou até 1945. Mudou o sistema social e político da primeira república. Na vigência da Constituição de 1946, a eleição de Jânio Quadros (JQ, 1960) caracterizou uma revolução civil pacífica. Postou-se contra a feição oligárquica da sociedade brasileira. Colocou os interesses do Brasil acima dos interesses de grupos e de qualquer outra nação. Mudou o rumo das relações exteriores, reduzindo a dependência em relação aos EUA. Estabeleceu relações diplomáticas com países comunistas (Cuba, Rússia, China). O governo estadunidense reagiu. JQ renunciou ao cargo (08/1961). Os militares brasileiros, tecnológica, material e culturalmente inferiores e subservientes ao governo dos EUA, tentaram impedir a posse do Vice-Presidente João Goulart (JG, 1961). Os estamentos civil e militar chegaram a um acordo: instituíram o parlamentarismo.
A solução pacificadora não impediu a marcha socializante e de redução da dependência nacional em relação ao estado norte-americano. JG aprofundou a ação iniciada por JQ. O parlamentarismo foi substituído pelo presidencialismo. Serva da inteligência norte-americana, a caserna rebelou-se e colocou os tanques na rua (1º/04/1964). JG colocou a viola no saco e foi tocar no Uruguai. Evitou derramamento de sangue. Instaurou-se o governo autocrático (1964-1985). Promulgada a nova Constituição da República Federativa do Brasil, restaurou-se o governo democrático (1988). Durou até 2016, quando novo golpe foi desferido por uma quadrilha de larápios que assumiu a direção do estado e da sociedade. O golpe foi desferido por ação conjunta do vice-presidente, de deputados e senadores, e teve êxito por omissão do supremo tribunal.    
A conspiração e a ação militar/civil de 1964 foi contrarrevolucionária. O seu objetivo era impedir a continuidade daquela desarmada senda revolucionária socializadora iniciada por JQ e seguida por JG. Cuida-se de movimento interno típico do golpe de estado. A ação efetiva partiu de uma instituição permanente e essencial à defesa do estado (Forças Armadas). Essa instituição estatal está subordinada à autoridade suprema do Presidente da República. No entanto, a serviço do governo estadunidense, a mencionada instituição conspirou e agiu contra essa autoridade. Ao derrubar o seu chefe máximo, violou a ordem constitucional e quebrou o marcial princípio da hierarquia e disciplina.
Desde a segunda guerra mundial as forças armadas brasileiras colocam-se ao lado do governo dos EUA. Mantiveram essa posição enquanto durou a guerra fria (EUA versus URRS, 1950-1990) e assim continuam no presente século. Cumprem fielmente o sagrado dever de defender a pátria norte-americana. A Casa Grande do Norte não permite certas liberdades no seu quintal. Inventa motivos, formula acusações falsas, espalha mentiras, promove intrigas, faz ameaças, tudo para intervir por via diplomática ou por qualquer outro meio nos assuntos dos países da América Latina. De modo algum permite uma segunda potência no continente americano. Corta logo as asas dos mais atrevidos. O caminho do potente estado norte-americano no continente é facilitado pelo fato de o seu quintal estar repleto de vira-latas.       

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