quinta-feira, 22 de março de 2018

JUSTIÇA HUMANA

Há justiça divina? Talvez. Antes, mister saber se deus existe e, caso afirmativo, se é possível, em face das nossas limitações, senti-lo e compreende-lo. Quanto a isto, campeia a divergência entre os humanos e entre as suas religiões e filosofias. Os místicos hindus conceberam a lei do carma como expressão da justiça divina concernente aos fatos humanos. Crentes na reencarnação, tomam por base o comportamento individual e social e a atitude mental dos homens e mulheres (crianças e adultos). Bons sentimentos, bons pensamentos e boa conduta geram boas consequências, neste e no outro mundo. Maus sentimentos, maus pensamentos e má conduta geram más consequências, neste e no outro mundo. Os religiosos cristãos afirmam que, após o sincero arrependimento pelos pecados cometidos em pensamento e no comportamento individual e social, há o perdão divino; que esse perdão é superior à ideia e ao sentimento de justiça, ou seja: superior ao propósito de punição.
Há justiça humana? Sim. Ainda que exercida em nome de deus, essa justiça nada tem de divina. Cuida das nada divinas relações humanas neste planeta. Da necessidade de estabelecer regras de convivência entre os indivíduos e entre os grupos humanos brotou a ideia de justiça. Para assegurar o respeito a essas regras, a cultura humana, ao atingir o grau de civilização, organizou a segurança pública composta de guardas, fiscais e juízes, autorizada a se valer da força quando necessário. Pretendia evitar que os indivíduos e grupos se valessem da sua própria força para resolver suas divergências ou que castigassem, ao modo de cada um, os desafetos e os violadores das regras.         
A polidez, a cortesia, a tolerância, a paz entre os humanos, são próprias da civilização. Historicamente, são propriedades ocasionalmente ausentes. As guerras, os conflitos, as grosserias, as violências física e psicológica, são frequentes e muitas vezes terríveis. O esforço civilizatório com base na face angelical encontra muro fortificado na face demoníaca da natureza humana. Os sacerdotes egípcios resistiram ferozmente à revolução religiosa monoteísta do faraó Aquenaton. Sidarta, o primeiro Buda, rebelou-se contra a família, resolveu ser anacoreta, inicialmente abstêmio, depois glutão. Jesus, o Cristo, perdeu as estribeiras no vestíbulo do templo, às vezes xingava os seus opositores e não escondia sensualidade em relação às mulheres, principalmente à Maria Madalena. Maomé, jovem pobre, deu o golpe do baú, casou com viúva rica, fundou uma religião, declarou guerra aos infiéis e as batalhas prosseguem no presente século. Gandhi, o pacifista, obrigou sua esposa a lavar latrinas públicas. Padres e pastores dedicam-se à santa pedofilia.
Nas instituições políticas grassam hipocrisia, mentira, desonestidade e violência. As formalidades comuns às civilizações cedem ocasionalmente lugar às informalidades, aos ataques físicos e morais, violentos e indecorosos. A instituição judiciária, no plano ético, a mais destacada numa nação civilizada, também dá os seus tropeços.
No Brasil, a suprema corte exemplifica esse fato. Em geral, bem comportados, fiéis ao decoro (salvo o desleixo no uso da toga), corteses e respeitosos, mantenedores da solenidade das sessões e da austeridade do cargo, conscientes da relevante função social que exercem, os juízes da suprema corte, diante de situações concretas e adversas, às vezes perdem as estribeiras ao atingirem o limite da sua contenção formal e subjetiva. Isto aconteceu em sessões plenárias diferentes. Na última, de maior impacto do que as anteriores, os ministros Gilmar Mendes e Roberto Barroso confrontaram-se agressivamente. Valentia dos contendores.
Graças à televisão, o povo testemunhou o entrevero (21.03.2018), a manifestação, ao vivo, do polo demoníaco da natureza humana. Embora de modo pacífico e mais elevado espiritualmente, seria bom que os juízes manifestassem a sua humanidade com maior frequência e fundamentassem as suas decisões menos na justiça legal do estado e mais na justiça do coração; que buscassem algum equilíbrio entre os polos demoníaco e angélico da natureza humana, ou seja: entre os dois tipos de justiça.

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