sábado, 7 de outubro de 2017

SUICÍDIO

A morte é o derradeiro momento da existência dos seres vivos neste planeta. Esse fato natural é encarado resignadamente quando se trata de vegetal e de animal irracional. Quando a morte é de animal racional, a abordagem se complica. Além do natural, entra o fator cultural: religião, misticismo, crença, costume, moral, direito, convicções ideológicas e filosóficas. De acordo com a crença espiritualista, morte é transição da alma encarnada para a vida espiritual sem corpo físico. De acordo com o pensamento materialista, não existe essa transição; com o corpo, morre a alma. Os humanos se entristecem com a perda de plantas que cultivam, de animais que estimam e de pessoas de quem gostam ou admiram. A morte intencional de pessoas recebe diferentes nomes: infanti+cídio = matar crianças; femini+cídio = matar mulheres (neologismo decorrente do movimento de afirmação feminina); homi+cídio = matar humanos; sui+cídio = matar a si mesmo.
Considera-se crime tirar a vida do ser humano (matar alguém). Todavia, não há crime quando: [1] fundado na lei ordinária ou na lei marcial o estado mata o infrator; [2] na guerra, o soldado mata o inimigo; [3] em qualquer tempo ou lugar, o agente mata alguém em legítima defesa, no cumprimento do dever, no regular exercício do direito, ou em estado de necessidade.
No ordenamento jurídico brasileiro, tirar a vida de si mesmo não é crime, embora considerado pecado na dogmática religiosa. A pessoa suicida-se por diferentes motivos e situações existenciais, às vezes, difíceis de explicar. Assim, por exemplo, por que tirou a própria vida: O filósofo Sócrates? Porque o tribunal de Atenas mandou? O filósofo Sêneca? Porque o imperador romano mandou? O monge budista, que se fez tocha humana? Porque discordava das ações demoníacas dos agentes do estado? O homem rico, inventor de fama mundial, Santos Dumont? Porque estava profundamente desgostoso com o uso do seu invento como arma de guerra? O rico e culto estancieiro, estadista, presidente da república, Getúlio Vargas? Por não suportar a traição de amigos e as ofensas de adversários canalhas? O médico e escritor, Pedro Nava? Para abreviar doença incurável?
A desilusão, o desgosto, a decepção, a depressão, a falência, o desespero, a vergonha, a falta de amor, a realidade lancinante, a profunda dor moral, podem levar ao suicídio. Temos o direito de julgar o suicida atribuindo-lhe fraqueza de caráter ou covardia por escapar das tribulações da existência terrena ou por sucumbir à dor e ao sofrimento? Tal julgamento não seria leviano? Teria condição moral de ser justo e verdadeiro? 
Segundo a lei brasileira, há crime quando o agente intervém na vontade e no propósito do paciente (i) induzindo-o a se suicidar (ii) instigando-o a cometer suicídio ou (iii) prestando-lhe auxílio para esse fim. O bem protegido é a vida humana. O suicídio deve resultar da decisão individual, livre da interferência alheia. Comete crime o agente que de modo intencional e eficaz interfere nessa liberdade do paciente. O dolo pode ser direto (vontade deliberada de levar o paciente ao suicídio) ou indireto (no seu eventual proceder, o agente assume o risco de levar o paciente ao suicídio). Se o paciente foi forçado por alguém a se suicidar, a hipótese é de homicídio.   
A eutanásia, morte piedosa (por compaixão ou misericórdia, direito de morrer admitido por alguns países) pode ser vista como: [1] suicídio consentido, praticado por intermédio de outra pessoa (médico, enfermeiro, parente, amigo); [2] homicídio, quando o agente provoca a morte sem o consentimento do paciente.     
Do relato dos acontecimentos que culminaram com o suicídio do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (02/10/2017) nota-se: (i) a participação provavelmente culposa das autoridades federais no induzimento (ii) abuso praticado por essas autoridades (polícia federal, ministério público e magistratura). O triste e funesto acontecimento é a terrível consequência dos seguintes fatores: [1] mudança (ao arrepio do direito em vigor) do modelo acusatório de processo penal para o inquisitório praticado na justiça federal e tolerado pelas instâncias superiores; [2] promíscua relação entre delegados, procuradores e juízes federais na persecução criminal; [3] constrangimentos ilegais provocados pela ação conjunta das referidas autoridades (conduções coercitivas e prisões abusivas utilizadas como instrumentos de tortura psicológica para obter confissões e delações, acusações sem provas idôneas); [4] uso malicioso da norma jurídica para fins políticos partidários; [5] artifício de eleger um valioso propósito para justificar ações imorais, ilegais e inconstitucionais das autoridades públicas; [6] convicções fincadas na especulação e no cálculo das probabilidades ao invés de fundadas na prova objetiva, concreta e idônea da materialidade e da autoria dos atos e fatos.   
O atual estado de coisas não favorece a confiança da nação no trabalho da polícia, do ministério público e do judiciário. Impossível tolerar que a polícia, auxiliada pelo agente do ministério público e autorizada por juiz de direito, prenda e algeme cidadão que não estava em situação de flagrância, tire-o da sua função pública, deixe-o sem roupas no cárcere, faça-o vestir roupa de presidiário, sem que houvesse ação penal, processo penal e sentença condenatória. Que largueza é esta na aplicação da prisão preventiva, seja no inquérito, seja no processo penal? Medida excepcional tornou-se banal. A exceção virou regra. Que fim levou a presunção de inocência?
Os dados até agora publicados indicam que o reitor era bom cidadão, sem antecedentes criminais, honesto, trabalhador, culto, de largo prestígio dentro e fora do ambiente acadêmico, benquisto na família e no círculo de amizades. Que terrível crime esse homem foi acusado de cometer?
[1] Obstrução da justiça? Essa rubrica, que não consta da legislação penal brasileira, foi importada do sistema repressivo dos EUA. A ordem jurídica brasileira já possui, na linguagem própria, o título adequado a essa matéria: “Dos Crimes Contra a Administração da Justiça”. Sob esse título estão elencados diversos tipos e rubricas. (CP 338 e seguintes + lei 12.850/2013, art. 2º, §1º). Aquela rubrica estrangeira, palatável aos brasileiros de mentalidade colonizada, macaqueada pelas autoridades federais da polícia, do ministério público e do judiciário, sem definição legal, está servindo para encobrir ou justificar desatinos na esfera da persecução criminal. A apócrifa expressão significa impedir ou embaraçar ação policial ou judicial legítima. Ao utilizá-la oficialmente, delegados, procuradores e juízes ameaçam a vigência da garantia da liberdade secretada pela cultura ocidental:  nullum crimen nulla poena sine lege. Fazem tábula rasa da norma constitucional: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. (CR 5º, XXXIX).
[2] Solicitar ao seu subordinado acesso a um inquérito administrativo? Essa conduta não está tipificada como crime, quer no Código Penal, quer na legislação esparsa. Consta a rubrica “exercício arbitrário ou abuso de poder” que, nos termos das publicações do caso em tela, não foi praticado pelo reitor e sim pela autoridade pública.      
Ainda que a conduta imputada ao reitor estivesse definida na lei como crime, ele não merecia a violência sofrida. A dignidade da pessoa humana há de ser respeitada de fato e de direito e não se limitar apenas à mera declaração no texto constitucional sem qualquer efeito prático. O mesmo se diga do respeito à integridade física e moral do preso. (CR 1º, III + 5º, XLIX). A ação violenta, arbitrária, ilegal e inconstitucional das autoridades federais (polícia, ministério público, magistratura) constitui retrocesso ao período dos anos de chumbo da ditadura militar (1964-1985). Esta e outras ações semelhantes são possíveis graças à omissão, à frouxidão e/ou à conivência do Ministério da Justiça, da Procuradoria Geral da República, do Conselho Nacional de Justiça e dos tribunais superiores do Poder Judiciário.
A degenerescência institucional e a desestruturação do estado democrático de direito nesta quadra da história do Brasil estão a reclamar atitudes combatentes, firmes, corajosas, constantes, concretas e eficazes da Ordem dos Advogados do Brasil, das comunidades eclesiais de base, da comunidade acadêmica, dos sindicatos, das associações civis e dos movimentos sociais organizados.

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