domingo, 22 de outubro de 2017

SERVIDÃO HUMANA

ESCRAVIDÃO.  Regime social e econômico fundado no trabalho escravo. Homens e mulheres, crianças, adolescentes e adultos, submetidos a um senhorio numa relação de forte dependência, rigorosa disciplina e mínima liberdade, tratados como coisas e não como pessoas, sem participar dos rendimentos da propriedade em que trabalham. No Brasil, oficialmente, a escravatura negra durou 66 anos (1822-1888). Na América Portuguesa, já durava 300 anos. Os efeitos psicossociais duram até hoje.
A Constituição da República Federativa do Brasil (CR) inclui o trabalho entre os direitos sociais e estabelece o regramento fundamental. Nenhum homem ou mulher será reduzido à condição análoga a de escravo posto que [1] a dignidade da pessoa humana é fundamento da república e [2] ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante (CR 1º III + 5º III + 6º/11 + CP 149). O alto valor moral e espiritual do ser humano está na base desses preceitos jurídicos secretados no processo civilizatório e inscritos na consciência dos povos civilizados.   
As modalidades do crime estão assim definidas no Código Penal (art.149): [1] Reduzir alguém à condição análoga a de escravo: (i) quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva; (ii) quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho; (iii) quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto; [2] Cercear o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; [3] Manter vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apoderar de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. Como se vê desses dispositivos, os bens protegidos pelo código são: dignidade, saúde e liberdade da pessoa natural.   
Viver e trabalhar algemado, acorrentado, encarcerado ou na senzala, colocado no pelourinho, levar chibatadas, tapas e pontapés, servir de montaria, ser propriedade de alguém, tratado como coisa, objeto de compra e venda, submetido inteiramente à vontade do dono, significa ser escravo. Assemelhar-se a escravo não é igualar-se a escravo. Condição análoga não significa condição igual. Significa, tão somente, que entre duas situações diferentes alguma semelhança há que justifica o mesmo prêmio ou o mesmo castigo. O uso do vocábulo no sentido figurado (exemplos: “escravo da paixão”, “escrava dos filhos”, “escrava da moda”), não deve obscurecer o sentido real, histórico e jurídico. 
O trabalhador (homem ou mulher) não pode ser aviltado na sua dignidade, submetido a condições sub-humanas, humilhantes, explorado de modo cruel, receber tratamento que nem animal irracional merece. O trabalhador não perde a sua dignidade pelo fato de prestar serviço na zona rural, ou de ser pobre e inculto.         

PORTARIA. Ato administrativo de caráter ordinatório, voltado para a disciplina interna da administração pública. Ainda que na prática adquira indevidamente caráter normativo para disciplinar atividade externa, a portaria não se confunde com a lei stricto sensu. À autoridade administrativa não cabe legislar, inclusive sob a desculpa de interpretar a lei. A portaria ministerial deve se conformar ao decreto regulamentar do chefe do executivo e ambos (portaria e decreto) devem se ater à racional execução da lei sem modifica-la ou substitui-la. A definição jurídica das relações sociais e econômicas (como as do trabalho) compete ao Congresso Nacional e não ao Ministério. (CR 22, I + 59/69). Criar, modificar ou extinguir direitos e obrigações mediante normatividade estatal é atribuição exclusiva do Poder Legislativo. A pretexto de instruir como se deve interpretar e aplicar a expressão  - análoga a de escravo - nas relações de trabalho, o ministro legislou, extrapolou a sua competência e usurpou a do legislador. Deverá, pois, responder criminalmente pelo abuso que cometeu.

SUPREMO. O exame jurídico pela suprema corte do impeachment da Chefe de Estado e de Governo Dilma Rousseff é da máxima urgência e de prioridade absoluta para a estabilidade política da nação. No entanto, o mandado de segurança que o provoca está paralisado. O relator não se digna tirá-lo da gaveta, a presidente do tribunal não se digna avocá-lo e nenhum ministro se digna solicitar a inclusão na pauta de julgamento. Todos se fingem de mortos. Sepultaram a ação mandamental.
Essa conduta do Supremo Tribunal Federal me faz lembrar a justa indignação do juiz Bulhões de Matos, meu colega de toga no Estado da Guanabara, que assim falou e escreveu: “Supremo? Só de frango”. De lá para cá, a situação não melhorou. Imagino o Bulhões no gabinete da vara cível, gestos nervosos, óculos de aros grossos, na palidez de um rosto marcado, criticando o tribunal em voz alta (ele era um pouco surdo): “Supremo? De tribunal, só o nome; aquilo mais parece uma cloaca”. A escutá-lo, eu, juiz substituto, prestes a iniciar as audiências. Agora, no tribunal divino, ao conhecer a verdadeira justiça, certamente a sua alma encontrou a paz.   

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