sábado, 14 de outubro de 2017

JUDICIÁRIO x LEGISLATIVO

Na sessão do dia 11/10/2017, o Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria dos seus membros (6 x 5), decidiu que medidas cautelares influentes sobre o exercício do mandato parlamentar dependem da anuência da Câmara dos Deputados ou do Senado. Os ministros sustentaram suas posições nos longos resumos dos seus longos votos nos quais o ingrediente político (não partidário) pesou tanto quanto o jurídico. A erudição, a prolixidade e a pletora de enredos históricos e de citações doutrinárias anuviaram os votos. À presidente do tribunal cabe proclamar o resultado do julgamento. Para tanto, ela anota a síntese de cada voto. Não só neste caso, mas também em outros, frequentemente ela necessita pedir esclarecimento ao colega, isto depois de o colega ter falado mais de uma hora! Em um minuto, o colega diz à presidente o que ele decidiu. Às vezes, os ministros pedem explicações uns aos outros, para saber o que foi votado. A clareza cede passo à vaidade.
No caso em tela, parece possível entender que o tribunal: (i) tratou a questão sub judice em nível institucional (ii) deixou em segundo plano o aspecto casuístico, individual ou partidário (iii) mostrou que estava em jogo a independência e a harmonia entre os poderes da república, o equilíbrio de forças entre eles e a moderação no funcionamento do mecanismo de freios e contrapesos.
O entendimento da maioria colidiu com o anterior entendimento oportunista, populacheiro e inconstitucional, adotado nos casos dos parlamentares Cunha, Delcídio e Renan. E agora, José? A Constituição é o que o STF diz que é, de acordo com a direção do vento? Que respeito merece um tribunal que atua desse modo? O voto vencido, acompanhado por 4 ministros, prestigia aqueles casuísticos precedentes como quem coloca esparadrapo na ferida. O voto vencedor, acompanhado por 5 ministros, evitou o choque Judiciário x Legislativo.
De acordo com a Constituição em vigor, o STF não precisa de autorização da Câmara ou do Senado para conhecer e processar ação penal proposta contra deputado ou senador. A petição inicial da ação penal provoca a atividade jurisdicional dos magistrados e a instauração do processo penal. Ao receber a denúncia (petição inicial da ação penal pública) e, assim, instaurar o processo, o STF notifica a Casa Legislativa a que pertence o acusado (Câmara ou Senado), sem prejuízo dos trâmites processuais. A competência da Casa Legislativa adstringe-se à suspensão do processo e pode ser exercida enquanto o STF não proferir a decisão final. [CR 53, §3º].
No processo judicial do tipo condenatório, ainda que tenha alguma função declaratória, há duas instâncias marcantes: a do conhecimento e a da execução. A primeira corresponde à lide, discussão da causa, a saber: (i) pretensão punitiva do Estado de um lado e, de outro, a pretensão defensiva do réu (ii) produção da prova necessária ao pleno conhecimento da matéria (iii) solução fundada nesse conhecimento. Se a Casa Legislativa não sustar a ação penal, a instância de conhecimento culminará na sentença. A partir daí, começa a instância de execução. Se a sentença for condenatória e implicar a prisão do réu, a execução respectiva dependerá de autorização da Casa Legislativa. [CR 53, §2º]. O mandado de prisão será logo cumprido se houver autorização; se não houver, o mandado será cumprido quando o réu não mais exercer o cargo, hipótese em que o prazo prescricional fica suspenso. A chance da impunidade não é pequena. Risco próprio do estado democrático de direito. Advertência ao eleitor para que valorize o voto e escolha melhor os seus representantes.  
Procedimento semelhante observar-se-á no caso de prisão preventiva (Código de Processo Penal - CPP 311/312). A decisão que determina essa medida cautelar pode ser tomada antes mesmo de a lide se constituir. Isto significa ser proferida sem pleno conhecimento da causa. Essa modalidade de prisão acontece no momento executório da decisão que a decretou e a sua efetivação depende da anuência da Casa Legislativa. A lei ordinária (CPP) não pode retirar, nem reduzir, o vigor da norma constitucional (prerrogativas dos parlamentares). As prerrogativas protegem o mandato outorgado pelo povo ao parlamentar; portanto, estão vinculadas ao voto popular e à forma democrática de governo. As prerrogativas não se confundem com privilégio pessoal do parlamentar e nem com licença a ele concedida para a prática de crimes. O delinquente pode ser afastado: [1] do cargo, por decisão da Casa Legislativa [2] da carreira política, por decisão do eleitorado (resultante das eleições regulares ou de plebiscito) [3] da vida pública, por decisão judicial.   
O mesmo se aplica às outras medidas cautelares arroladas na lei ordinária (CPP 319). As prerrogativas constitucionais funcionam como barreiras à execução da decisão judicial. O brocardo “sentença judicial não se discute, cumpre-se” dirige-se aos destinatários da ordem judicial, mas até mesmo estes podem discuti-la no bojo do devido processo legal, em diferentes graus de jurisdição, até o trânsito em julgado. Mesmo transitada em julgado, a sentença poderá ser atacada mediante ação rescisória (cível|) ou revisão de processo findo (criminal). Onde vigoram as liberdades de expressão e de manifestação do pensamento, a sentença fica sujeita à crítica acadêmica e à opinião pública. A questão se complica quando a ordem do Judiciário entra em conflito com a competência do Legislativo. Aí, o bicho pega!
O Judiciário pode conhecer do pedido de medida cautelar e deferi-lo sem autorização da Casa Legislativa. Como as medidas cautelares interferem no exercício do mandato parlamentar, a decisão judicial que as defere só pode ser executada se a Casa Legislativa permitir; se não permitir, as medidas serão executadas depois de o parlamentar deixar o cargo. Dura lex sed lex. 
A tutela jurisdicional pode ser antecipada. Na esfera criminal, essa antecipação pode ocorrer tanto no inquérito policial como no processo penal. Quando o indiciado, ou denunciado, for parlamentar, a antecipação da tutela, nos casos de prisão preventiva ou de restrição a outros direitos atinentes ao exercício do mandato, só poderá ser executada com o consentimento da Casa Legislativa. Nesta hipótese, a concessão liminar da medida pleiteada só produzirá efeito depois do pronunciamento favorável da Câmara ou do Senado.   
Entre a ação penal proposta contra parlamentares e a proposta contra o presidente da república, há diferenças. Na primeira, a instauração do processo independe de autorização da Casa Legislativa, enquanto na segunda, a instauração do processo depende de autorização da Câmara dos Deputados. Na primeira, embora decretados pelo STF, a prisão e o afastamento do parlamentar só podem ser efetivados com a prévia concordância da Casa Legislativa, enquanto na segunda, o afastamento do presidente é consequência do recebimento da denúncia pelo STF e a prisão ocorre após o acórdão transitar em julgado. [CR 86, §§ 1º, I + 3º].     

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