sexta-feira, 5 de agosto de 2016

IRRESIGNAÇÃO

Sentindo-se ameaçado em seus direitos, desamparado pelas instituições judiciárias e vendo a democracia brasileira ser golpeada por quarenta ladrões, o cidadão Luiz Inácio da Silva, ex-presidente da república (2003/2010), recorreu ao foro internacional acusando de parcialidade e abuso de autoridade o juiz e os procuradores que atuam na denominada Operação Lava-Jato.
Tal iniciativa foi repudiada pelas associações dos magistrados estaduais e federais (AMB + AJUFE), que são pessoas jurídicas de direito privado cuja finalidade é defender a magistratura como classe social, sem legitimidade para falar em nome do Poder Judiciário. Defender associado que pratica atos ilícitos é característica do corporativismo abjeto. As notas divulgadas indicam postura política desfavorável ao investigado. Isto reforça o acerto da iniciativa do investigado em buscar amparo no foro internacional.
Há juízes que discordam: (1) da abusiva, demagógica e espetaculosa atuação do juiz curitibano; (2) do apoio dado a esse juiz pelas associações. O combate à corrupção não justifica a incestuosa simbiose entre juiz e procurador defendida na esfera classista. Em ação penal pública, o procurador da república (Ministério Público) é autor, ocupa o polo ativo da relação processual. A sua cumplicidade com o juiz da causa fere de morte a garantia da imparcialidade e do devido processo jurídico. Espetáculos circenses também são inadequados para extirpar corrupção.
A deficiência moral está no DNA do tipo de brasileiro que gosta do jeitinho enganoso e de levar vantagem em tudo. O combate eficiente há de ser travado no campo da educação moral e cívica de maneira metódica e ininterrupta. Na área forense, o combate é adjutório, punitivo e efêmero. (A Itália que o diga). A olímpica safadeza de dois bilhões de reais, a falência dos Estados, a negociata petroleira de bilhões de reais, o assalto ao erário de outros bilhões para garantir a presidência ao vice-presidente, a ciclovia da morte, são exemplos recentíssimos de que a operação não assustou os corruptos e não impediu a avassaladora corrupção. 
Neste início de século, a dita operação poderia ser o fato mais importante da república brasileira na área do combate ao crime se não houvesse desvirtuamento, a predominância do caráter inquisitório, parcial e arbitrário, típico da Idade Média. Sob o pretexto de combater a corrupção, o juiz curitibano continua a praticar as arbitrariedades e os abusos denunciados. Mandados coercitivos expedidos sem que houvesse anteriores intimações para voluntário e espontâneo comparecimento. Prisões preventivas a rodo, mudando a exceção em regra. Pessoas presas psicologicamente constrangidas a confessar e a delatar. Privacidades invadidas, inclusive de parlamentares, Presidente da República e ministros do supremo tribunal. Emissoras de TV e jornais impressos utilizados para acobertar ilicitudes, publicar matéria sigilosa e manipular a opinião pública. Nesse contexto, o principal e oculto objetivo da referida operação veio à tona: (1) impedir eventual candidatura do cidadão Luiz Inácio à presidência da república; (2) apurar fatos incriminadores, ou cria-los artificiosamente, vinculados aos partidos e agentes do governo Rousseff; (3) deixar de apurar os fatos incriminadores vinculados aos partidos e agentes da oposição ao governo Rousseff.
Na sua nota, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) diz que o Comitê de Direitos Humanos da ONU não deve ser utilizado para “constranger o andamento de quaisquer investigações em curso, principalmente as que têm como prioridade o combate à corrupção”. A AMB partiu do pressuposto de que o Comitê é constituído de mentecaptos. Sofismou. Do que foi publicado, constata-se que o propósito da comunicação feita ao setor de petição do Alto Comissariado dos Direitos Humanos da ONU (Genebra, 28/07/2016), não é “constranger” e sim denunciar a má conduta do juiz e dos procuradores naquela operação. Se tiver fundamento, a pretensão do comunicante será atendida; se não tiver, será rejeitada.
Ao censurar a iniciativa de um cidadão brasileiro buscar proteção junto ao órgão internacional competente para conhecer e julgar o caso, a AMB parece estar sob a direção de gente estranha à arte e à ciência do direito, de gente que ignora a existência do direito subjetivo aos recursos postos à disposição das pessoas pelo direito internacional. O Comitê, distante da arena onde se digladiam os partidos políticos e pululam as idiossincrasias locais, decidirá se a representação do cidadão brasileiro é procedente ou improcedente.
Todo homem tem direito: (1) à vida, à liberdade e à segurança pessoal; (2) em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial; (3) de ser presumido inocente até que sua culpa tenha sido provada de acordo com a lei. Ninguém será: (4) arbitrariamente preso, detido ou exilado; (5) sujeito a interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar, na sua correspondência; nem a ataques à sua honra e reputação. (Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigos III, IX a XII, ONU/1948).    
Toda pessoa pode se resignar diante dos fenômenos da natureza e dos fatos sociais. A resignação é atitude de renúncia à resistência, de conformação com os reveses da vida, de não reagir à violência. Essa passividade faz parte da doutrina cristã. “Se alguém te ferir a face direita, oferece-lhe também a outra; se alguém te citar em justiça para tirar-te a túnica, cede-lhe também a capa”. Orientação de Jesus, o Cristo, aos seus discípulos no sermão da montanha. Essa doutrina de Jesus visa a santificar o homem comum.
A doutrina jurídica visa a civilizar as relações humanas. O homem comum não santificado resiste aos ataques sofridos, reage às ofensas, mostra indisposição para se resignar. A irresignação é atitude natural de inconformismo do homem não santificado motivada por: (1) agressão física sofrida; (2) perda da pessoa amada ou do patrimônio; (3) situação contrária ao seu interesse, à sua crença religiosa, aos seus valores morais, ao seu código de vida. O legislador estabelece regras para disciplinar a irresignação e evitar que: (I) as pessoas façam justiça pelas próprias mãos; (II) provoquem “guerra de todos contra todos”; (III) "o homem seja o lobo do homem"  (Hobbes).
O direito coloca à disposição das pessoas: (i) normas materiais e processuais para defenderem a sua liberdade, o seu patrimônio, a sua integridade física e moral: (ii) ações judiciais para a solução de controvérsias; (iii) recursos contra as decisões dos juízes e tribunais; (iv) mecanismos disciplinares contra a má conduta dos juízes.
Recorrendo ao foro internacional, o ex-presidente da república brasileira mostrou a sua irresignação com a conduta e as decisões das autoridades da sua pátria. Ele exerceu de forma legítima o direito em vigor na comunidade das nações.
Sintomática a alusão feita pela AMB ao projeto de lei 280/16, do Senado Federal, que tipifica como crime de abuso de autoridade diversos atos “comuns” no curso das investigações. Na opinião dessa classista entidade: (I) o texto do projeto é clara tentativa de amordaçar a magistratura, contrária ao interesse da nação em ter um Poder Judiciário forte e independente; (II) se o texto estivesse em vigor, a Operação Lava-Jato não teria sido possível. Sofisma. A ética judiciária preceitua: juiz só deve falar nos autos do processo e se abster de pronunciamentos públicos e de proselitismo. Se o texto do projeto estivesse em vigor, o combate à corrupção seria possível; improváveis seriam as arbitrariedades e os abusos praticados. O juiz curitibano também se manifestou contra o projeto e rogou o arquivamento aos senadores.
Da posição contrária ao projeto, verifica-se que a AMB quer para os magistrados o que todo bandido quer para si mesmo: ampla liberdade de ação, sem os limites constitucionais e legais. Ninguém gosta de freios, porém os freios postos pelos bons costumes, pela moral e pelo direito, são necessários à nação civilizada. Através do projeto, o Senado está dizendo ao povo: aquela conduta é nefasta e antijurídica; a lei em vigor mostrou-se insuficiente para coibi-la.
O projeto preserva os magistrados que: (1) exercem o seu ofício em sintonia com a Constituição, a Lei e a Ética; (2) respeitam os jurisdicionados; (3) encarnam virtudes cardeais: honestidade, imparcialidade, coragem, independência, serenidade, senso de justiça, cultura jurídica, lucidez, sensatez, pontualidade, urbanidade, isenção política partidária, conduta irrepreensível na vida pública e particular. 
“Não há tribunais que bastem para abrigar o direito quando o dever se ausenta da consciência dos magistrados” (Ruy Barbosa).

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