sexta-feira, 12 de agosto de 2016

CARTA

Prezado Luis Roberto.
Espero que esta missiva o encontre com saúde e bem disposto. 
Na rede de computadores, eu vi comentário em tom pejorativo classificando você de esquerdista. Nas sessões plenárias do Supremo Tribunal Federal (STF) não há ninguém à sua direita; à sua esquerda postam-se Rosa Weber, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello. Esquisito esse esquerdismo de direita. Considerada a posição central do presidente da sessão, você e seus colegas retro mencionados ficam na bancada da direita. Isto lembra a divisão do espectro político em direita e esquerda que entrou para o vocabulário comum a partir do posicionamento dos deputados na assembleia nacional francesa: os socialistas ficavam à esquerda e os conservadores à direita. No Brasil, o paradoxal esquerdismo de direita foi inaugurado no governo de Fernando Henrique Cardoso: social democracia de direita (e corrupta). 
Em palestra gravada e publicada na citada rede, você se declarou o mais antigo constitucionalista brasileiro depois do cearense Paulo Bonavides. No entanto, há vetustos professores e doutrinadores aí mesmo no tribunal e em universidades brasileiras, alguns aposentados, mas intelectualmente ativos, tais como: Dalmo de Abeu Dallari, José Afonso da Silva, Fernando Whitaker da Cunha, Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Quando o seu decanado chegar, você provavelmente estará na faixa dos sexagenários. Desde cedo, você mostrou interesse pelo direito constitucional. Lembro que em 1987, antes dos seus 30 anos de idade, na convenção de Porto Alegre/RS realizada pelo Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, você defendia propostas para a futura Constituição (1988). Na época, eu era juiz de direito na capital do Estado do Rio de Janeiro e participava daquela convenção em terra gaúcha por conta própria para defender 16 propostas de minha autoria, as mesmas que eu havia apresentado e defendido em Recife/PE, no X Congresso Nacional da Magistratura, das quais apenas a metade foi incorporada à Constituição. Das propostas restantes, uma recuperou o fôlego depois de quase trinta anos: Presidente de Tribunal de Justiça eleito pelos juízes estaduais vitalícios. Judiciário estadual democrático.  
Recentemente, você declarou à imprensa que não pediu para ser ministro, que torcia pelo bem da senhora Dilma Rousseff, mas não se sentia devedor. Penso que a gratidão é possível sem o vínculo obrigacional e que há mais virtude em ser juiz do que em ser ministro. Até o momento, ao meu sentir, a sua independência como juiz é inquestionável, assim como o seu preparo moral e jurídico. A Presidente da República acertou ao nomeá-lo. Ainda que não tenha pedido, o fato é que você aceitou o cargo. Acredito que algum esforço, direto ou indireto, você despendeu para ser nomeado, pois como sincera e francamente admitiram os ministros Fux e Fachin, a peleja é renhida e os candidatos promovem suas campanhas de diversos modos. Talvez, a sua discrição no episódio se deva à louvável cautela quanto a uma futura ação judicial proposta pela Presidente da República perante o STF em cujo processo você terá de atuar. Realmente, se na sentença definitiva o Senado declarar o impeachment, a Presidente poderá recorrer ao STF em defesa do seu mandato, denunciando os vícios formais e materiais daquele processo (CR 5º, XXXV).
Ao senso comum parece que: (1) a gratidão gera dívida e dívida gera obrigação de pagar; (2) isto faz do nomeado um juiz parcial; (3) ao apreciar causa do interesse da autoridade que o nomeou, o juiz a favorece. Ciente disto, o juiz aciona um mecanismo psicológico de defesa das suas virtudes e acaba por cometer injustiça: julga improcedente pretensão moral e juridicamente legítima.
Pelo que assisti nas sessões plenárias através da TV, o seu desempenho no cargo, desde a posse até a presente data, mostra que você julga de acordo com a sua consciência, com base na Constituição, na lei, na jurisprudência e na doutrina, sem se contagiar com a opinião publicada nos meios de comunicação social e sem se dobrar a pressões internas e externas, tudo de forma bem educada e cavalheiresca. Outrora, eu assistia às sessões do tribunal com mais frequência. Cansei daquele blá-blá-blá dos ministros e das transgressões ao regimento interno, principalmente no que tange à falta de pontualidade no início das sessões, aos apartes inoportunos e sem prévio consentimento, às conversas paralelas e simultâneas, à falta de decoro. Parece mais uma academia do que um tribunal. Poupo-me do desconforto de ver o modo enjambrado de alguns ministros vestirem as capas, desleixo indicativo da falta de apreço pela nobreza da toga. Quando Gilmar é relator, eu desligo o som, retiro-me da sala e só volto quando começa a votação. Além de prestar tutela jurisdicional sob a bandeira de partido político, esse ministro é um porre. Após ouvir o voto do Fachin, o seu e o do Teori, eu desligo o aparelho de TV.
No enlevo golpista, Michel Temer, advogado, professor de direito constitucional, supervisor honorário do Porto de Santos, propinatário de empreiteiras, ficha eleitoral suja, Vice-Presidente no interino exercício da Presidência da República, qualificou de político o processo de impeachment. Sub-repticiamente, Michel advoga em causa própria. Nesse tipo de processo a vontade política incide apenas sobre a parte executiva do dispositivo da sentença (se convém ou não convém aplicar a pena). A manifestação do esperto Vice-Presidente é tendenciosa, tem por objetivo ocultar a natureza jurídica do processo e apoiar o tratamento político da questão pelo Senado no intuito de defenestrar a legítima titular do cargo. Decisão política inapelável é somente aquela tomada no devido processo pelo Legislativo (municipal, estadual ou federal) sobre as contas do Executivo. Até as decisões políticas tomadas no processo legislativo estão sujeitas à apreciação judicial quando as normas decorrentes contrariam princípios e regras constitucionais.    
A afirmativa de Michel encontra óbice intransponível no fato de o processo de impeachment ter por finalidade a apuração de crime para o qual é cominada pena de perda do cargo e inabilitação para exercício de função pública. Esse tipo de pena, por ser diferente da privativa de liberdade e da pecuniária, não retira a índole criminal do processo. O bem que a Constituição e a Lei protegem no impeachment é de natureza política e administrativa, porém o processo que o protege é de natureza jurídica. As condutas prejudiciais a esse bem são tipificadas como crime de responsabilidade. No propósito de justificar uma artificiosa e exclusiva natureza política do impeachment e o subtrair da apreciação judicial, afirma-se: (1) que não é crime o que a norma jurídica diz que é crime de responsabilidade; (2) que se trata de ilícito administrativo indevidamente qualificado de crime pelo legislador. Tal argumentação escapa ao bom senso, à boa-fé e à sanidade mental. A Constituição e a Lei definem como crime de responsabilidade as condutas que mencionam. Em se tratando de crime e de aplicação da pena a ele cominada, jurídico é o processo que apura a responsabilidade do acusado de praticá-lo. Assim é no vigor do Estado Democrático de Direito.
O princípio do devido processo jurídico vigora plenamente na dupla dimensão formal e substancial no âmbito dos três poderes da república democrática. Se a questão de fato envolve crime de conteúdo político, administrativo, civil ou militar, tratar-se-á de ação ou omissão criminosa cujo processo e julgamento são disciplinados pelo direito, quer o órgão processante e julgador pertença à estrutura do Poder Legislativo, quer pertença à estrutura do Poder Judiciário. Em qualquer desses órgãos, inarredável a necessidade da decisão revestir-se de juridicidade. O interesse nacional pela preservação da ordem jurídica e democrática está acima das disputas políticas partidárias.
No processo de impeachment, a decisão do tribunal parlamentar versa sobre crime; logo, passível de revisão pelo tribunal judiciário. A última palavra sobre a tipificação da conduta como criminosa cabe ao tribunal judiciário (no caso, ao STF, Guardião da Constituição). Somente é política a parte da decisão do tribunal parlamentar que, ao declarar procedente a denúncia, deixa de aplicar a pena. A decisão desse tribunal que julgar procedente a denúncia e aplicar a pena terá de estar amparada no direito, jamais na caprichosa vontade política dos senadores. A sentença condenatória está sujeita à revisão pelo STF. Condenação sem que estejam provadas a materialidade e a autoria do crime, ou a conduta dolosa do agente, ou que esteja fundada em artifícios e ginástica cerebrina, não tem amparo na moral e no direito, mormente quando parcela dos julgadores é corrupta. O princípio da moralidade foi incorporado ao sistema constitucional brasileiro.
Com os votos de que você prossiga com o mesmo denodo na magistratura e receba o merecido reconhecimento da nação brasileira, subscrevo-me atenciosamente.
Antonio Sebastião de Lima.  

Um comentário:

Jorge Béja ( Rio de Janeiro ) disse...

Carta de um Juiz iluminado, de ampla visão social, inigualável, para ex-advogado, que se tornou Juiz e que se notabiliza Juiz notábilíssimo. Ambos conheci pessoalmente. Ambos me conhecem. Ambos gostam de mim. E deles, gosto muito mais, ontem, hoje e por toda a Eternidade.
Jorge (RJ)