sábado, 2 de outubro de 2010

DIREITO

FICHA LIMPA

A podridão moral no organismo político gerou a necessidade de normas jurídicas para exigir honestidade e conduta ilibada dos candidatos a cargos eletivos. Parcela do povo brasileiro formulou projeto de lei e o apresentou ao Congresso Nacional para ampliar os casos de inelegibilidade, mormente no que tange à vida pregressa do candidato, visando à proteção da moralidade para o exercício do mandato. A malta que dita leis aos brasileiros estava inerte nessa matéria. A moralização do mandato não lhe interessava. Depois da iniciativa popular, tentou engavetar o projeto. Pressionada pela opinião pública, deu seguimento aos trâmites legislativos, mas introduziu maliciosas modificações.

Senador acusado de faltar ao decoro parlamentar renunciou ao mandato antes da instauração do processo. Evitou, assim, o risco de condenação. Depois, o ex-senador pediu registro da sua candidatura ao governo do Distrito Federal. A lei da ficha limpa veda o registro de candidatura de quem renunciou ao mandato para fugir de processo. Com base nesse dispositivo, a justiça eleitoral indeferiu o pedido. O ex-senador recorreu ao Supremo Tribunal Federal - STF, alegando que a lei nova não pode retroagir para prejudicar o direito adquirido (à candidatura) e o ato jurídico perfeito (renúncia); que a lei da ficha limpa alterou o processo eleitoral e por isso produz efeito só depois de 1 (um) ano a partir do início da sua vigência. Advogados ocuparam a tribuna e apresentaram razões contra e a favor da decisão do Tribunal Superior Eleitoral - TSE. O Procurador Geral da República opinou pela manutenção do indeferimento do registro e pela conseqüente rejeição do recurso. O ministro relator votou a favor da decisão do TSE, negou provimento ao recurso e declarou inelegível o ex-senador.

Sem dar a palavra ao votante seguinte, o presidente do STF apresenta “questão de ordem”: inconstitucionalidade da lei. Afirma que o projeto foi modificado no Senado e não retornou à Câmara dos Deputados, como determina a Constituição. Justifica a sua intervenção: o exame de ofício da constitucionalidade de lei está no âmbito da competência do STF. Destarte, se essa questão fosse acolhida, o exame do recurso seria dispensável; se desacolhida, proceder-se-ia ao exame; se houvesse empate na votação, o processo ficaria suspenso e o exame da matéria de fundo seria dispensável. Contra a técnica processual, examinou-se em conjunto a preliminar e a matéria de fundo. Perdeu-se um tempo enorme!

A citada “questão de ordem” é na verdade uma questão preliminar prejudicial ao exame do mérito do recurso. A questão de ordem é de natureza administrativa (regimento interno do STF, art. 13, inciso VII) e pode se referir ao registro ou classificação das ações, à seqüência dos trabalhos nas sessões, enquanto que a questão preliminar ao exame do mérito é de natureza jurisdicional e se acolhida extingue o processo. Embora corte constitucional, o STF está sujeito à regra geral que proíbe os juízes de agir de ofício. O tribunal não pode cuidar de questões não suscitadas e que exigem a iniciativa das partes. No que tange ao controle difuso da constitucionalidade das leis, em instância recursal, se o tribunal verificar que a lei aplicável não se ajusta à Constituição e que não houve manifestação a respeito, deverá ouvir as partes e o Ministério Público, em atenção ao princípio do contraditório. Desse modo, os litigantes não serão surpreendidos com uma decisão sobre matéria que não foi objeto da demanda.

O ministro Lewandowski defendeu a constitucionalidade da lei da ficha limpa; sustenta que a emenda feita no Senado foi de mera redação e que a questão posta pelo presidente do tribunal não merece exame porque o processo está na seara do controle difuso. A ministra Carmen Lúcia lembra a obediência devida ao princípio do contraditório a exigir pronunciamento das partes (e do Procurador Geral da República). A sessão foi suspensa e prosseguiu na quinta-feira (23/09/2010) até a madrugada da sexta-feira. Na ordem de votação, o ministro mais novo discordou do relator e deu provimento ao recurso para reconhecer a elegibilidade do ex-senador. Na seqüência, 4 ministros acompanharam esse voto divergente e 4 acompanharam o voto do relator. O julgamento terminou empatado. O ex-senador desistiu do recurso. Em conseqüência, permanece em vigor a decisão recorrida (do TSE).

Os ministros discutiram sobre o tempo verbal aplicado nos dispositivos da lei da ficha limpa. Os efeitos jurídicos seriam distintos conforme o tempo do verbo fosse o passado ou o futuro. O ministro Lewandowski teve o cuidado e a humildade de consultar catedrático de lingüística da Universidade de Campinas, cujo parecer elucidou a questão. A Assembléia Nacional Constituinte consultou especialistas para a redação final da Constituição de 1988. Na elaboração de códigos é comum a consulta aos estudiosos do idioma. A redação do Código Civil de 1916, por exemplo, foi alvo de acesa polêmica entre Rui Barbosa e o professor Ernesto Carneiro Ribeiro (1903/1904). O presidente do STF menosprezou o parecer do professor consultado e sem modéstia alguma se colocou acima do especialista. Esse presidente costuma exibir impaciência e irritabilidade nas sessões do tribunal, como se algum vírus lhe estivesse a beliscar o fígado. Se o trabalho o desagrada ou cansa em demasia, deve aposentar-se e dar lugar a quem estiver mais bem disposto. Um juiz mal com a vida não é boa recomendação para a serena e imparcial distribuição de justiça.

Em matéria de linguagem, os magistrados têm suas limitações. Nas sessões do STF, com uma ou outra exceção, a regra é a verbosidade dos ministros, excesso de palavras, repetições, erros de concordância, idéias sem encadeamento lógico ou sem pertinência com a matéria, divagações, pausas embaraçosas para retomar o rumo do discurso, palavras mal empregadas, redundâncias, rabugices e assim por diante. Há falta de clareza e de síntese. Pelo excessivo e, por vezes, decorativo apoio nas muletas da doutrina e da jurisprudência, nota-se nos ministros a ausência de pensamento amadurecido e autêntico. Votos extensos, rebarbativos, leitura enfadonha que prolonga os julgamentos e as sessões. Daí o acúmulo de milhares de processos e o atraso na prestação jurisdicional. Os ministros se assemelham aos parlamentares que alongam os seus discursos na tribuna para permanecer o máximo de tempo possível sob a luz dos holofotes (TV). A vaidade sobrepõe-se à necessidade de imprimir um ritmo célere aos trabalhos. O assento no STF devia caber a juízes de carreira, cultos, experientes, sadios e operosos ao invés de caber a ministros.

Para julgar o recurso do ex-senador bastavam poucos minutos de um só dia. Os ministros levaram dois dias! Como havia duas posições opostas, uma rejeitando e outra acolhendo o recurso, era suficiente que os ministros se alinhassem com o voto do relator ou com o voto divergente, num simples voto de adesão. Cada ministro gastaria 3 minutos, no máximo. Pouco tempo de exposição na mídia. Os ministros precisam de mais tempo para rasgar seda, exibir erudição, ler seus longos votos, cada grupo com as mesmas lições de doutrina, os mesmos precedentes jurisprudenciais, os mesmos fatos, os mesmos argumentos, repetidos ad nauseam. Vaidade, tudo vaidade, como diria Salomão, o rei hebreu.

DOCUMENTOS PARA VOTAR.

O Supremo Tribunal Federal – STF, na sessão de julgamento do dia 30/09/2010, deferiu liminarmente medida cautelar requerida pelo Partido dos Trabalhadores - PT em ação judicial cujo pedido é alternativo, conforme lido pela relatora: declaração da inconstitucionalidade da lei que exige dois documentos para o eleitor votar, ou interpretação dessa lei conforme a Constituição. O PT afirma excesso da lei incompatível com o princípio da proporcionalidade e do devido processo legal em sua projeção material.

Questão saneadora preliminar foi negligenciada (CPC 267, 3º): a legitimidade do partido político para pedir suspensão ou anulação de lei por ele próprio elaborada, aprovada e sancionada. Incide a máxima: a ninguém é lícito aproveitar-se da própria torpeza (nemo auditur propriam turpitudinem allegans). É vedado à parte pleitear nulidade a que deu causa (CPC 243). O PT participou da elaboração da lei; o presidente de honra do PT a sancionou e publicou. Falta, pois, legitimidade moral e jurídica ao pleito.

Do ponto de vista formal, essa lei não apresenta vício algum: a sua elaboração obedeceu aos trâmites e às cautelas constitucionais e regimentais. O vício é substancial. Ao exigir dois documentos para o eleitor votar, sem ressalvar a hipótese de extravio do título de eleitor, essa lei peca por omissão e ameaça um bem maior: a soberania popular, cujo mecanismo essencial, o sufrágio, será travado. Os critérios de proporcionalidade e razoabilidade foram bem aplicados, neste caso, para proteger o bem maior. A cautela do legislador ordinário para prevenir as fraudes ficou excessiva por carecer, a lei, de um dispositivo declarando que, à falta justificada do título de eleitor, seria suficiente o documento oficial de identidade com fotografia. A justificativa do eleitor seria apresentada verbalmente aos mesários no ato da votação, tendo a seu favor a presunção de boa fé (CC 113).

Título de eleitor e comprovante da votação são exigências para atos da vida civil como, por exemplo, inscrição em concurso público. Esses documentos provam o cumprimento do dever político. Para os maiores de 18 e menores de 70 anos de idade, o voto é obrigatório, portanto, um dever. Para os menores de 18 e maiores de 70 anos, o voto é facultativo, portanto, um direito. A apresentação do título de eleitor no ato de votar é dispensável se o cidadão portar documento de identidade com fotografia. Os seus dados identificadores constam da lista de eleitores e da urna eletrônica na seção eleitoral.

A ministra relatora, Ellen Gracie, escoimou a nódoa e manteve a lei no ordenamento jurídico. Prudentemente, ela interpretou a lei de modo a não prejudicar o sufrágio, direito fundamental do cidadão e expressão da soberania popular. Com exceção de Gilmar Mendes e Cézar Peluso, os demais ministros acompanharam o sensato voto da relatora. Na eventualidade de extravio do título, o eleitor poderá votar mediante a apresentação aos mesários de documento de identidade idôneo com fotografia (cédula estatal de identidade, carteira de motorista, carteira profissional, cédula de identidade corporativa).

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