segunda-feira, 18 de outubro de 2010

DIREITO

O SUPREMO TRIBUNAL E A EXTRADIÇÃO.

O governo da Áustria solicitou a extradição de um brasileiro naturalizado. Afirma que, antes de obter a nacionalidade brasileira, o indivíduo praticara delitos na Áustria e, por isso, fora condenado judicialmente. Instaurado processo no Ministério da Justiça, constatou-se falsidade no processo de naturalização: o requerente omitira existência de processo por delitos praticados no país natal. Diante disto, o Ministro da Justiça cancelou o ato de naturalização e extraditou o delinqüente. Este propôs medida judicial para anular a decisão do ministro; alegou que a competência para decretar a perda da nacionalidade brasileira é do Judiciário e não do Executivo (CF 12, §4º, I).

O austríaco obteve naturalização mediante procedimento administrativo em que ele devia provar a inexistência de denúncia, pronúncia ou condenação por crime doloso (estatuto do estrangeiro, lei 6.815/80, art. 112, VII). Essa prova se faz por certidão negativa expedida pelo órgão judiciário do país de origem (Áustria, no caso). Se esse documento não constava dos autos, a naturalização devia ser recusada. Processado criminalmente por desvio de dinheiro, o austríaco fugiu para o Brasil, paraíso dos ladravazes, com a mala abarrotada de euros. Convinha-lhe urgente naturalização. Na linha dos maus costumes brasileiros, provavelmente alguém recebeu propina para negligenciar a aferição dos requisitos. Parte da propina talvez se destinasse ao partido que estava no governo (PSDB ou PT). Depreende-se do relato do caso no Supremo Tribunal Federal - STF, que o Executivo se contentou com mera declaração do requerente, o que tipifica negligência, leviandade e/ou cumplicidade.

O STF, na sessão do dia 13/10/2010, discutiu se o Executivo, ao cancelar a naturalização, praticou ato político ou administrativo, válido ou inválido. O ministro Lewandowski votou pelo híbrido caráter do ato que cassou a naturalização (administrativo na forma e político no conteúdo) e pela validade do cancelamento, eis que a nacionalidade fora obtida mediante fraude praticada no processo administrativo. A naturalização fora cancelada legitimamente pela mesma via e pelo mesmo poder que a concedera. O ministro Marco Aurélio votou pela invalidade do ato. Entendeu que o assunto cabe exclusivamente à esfera jurisdicional por envolver direitos adquiridos com a naturalização. O ministro Dias Tofolli o acompanhou. Houve discussão entre os ministros fora da ordem regimental. A ministra Carmen Lúcia pediu vista do processo e o julgamento foi suspenso. O ministro Celso de Mello saudou o pedido de vista como ensejo para maior estudo e reflexão sobre o tema. Isto lembra os primórdios da experiência jurídica na antiga Roma, quando o Direito recebia o nome de Jurisprudentiae por ser entendido como prudência (razoabilidade e proporcionalidade) e não como ciência no sentido cartesiano e moderno do termo.

A naturalização e a extradição têm características e procedimentos próprios, são institutos distintos, por isso mesmo, não ficou claro, na sessão de julgamento, se a medida judicial veio estribada, também, na competência do STF para processar e julgar a extradição (CF 102, I, g). Além disso, vislumbra-se, no debate, inversão da ordem lógica: coloca-se a perda da nacionalidade como antecedente quando, na verdade, ela é conseqüente. O cancelamento antecede a declaração de perda da nacionalidade. O cancelamento pode ocorrer por via administrativa ou por via judicial, nos limites da competência do Executivo e do Judiciário.

Diante da entrega do cidadão à Áustria, pela polícia federal do Brasil, o seu destino foi selado, o que autoriza a extinção do processo por ausência de interesse. O tribunal brasileiro não há de perder tempo com filigranas para salvar a pele de um ladrão. Os juízes da Áustria são tão bons quanto os juízes do Brasil. Lá, o indivíduo foi processado e condenado no devido processo legal. Isto significa que houve prova suficiente: (i) da autoria e materialidade do crime; (ii) da culpa do agente. O delinqüente extraditado deve estar preso na Áustria há muito tempo. Decisão do Judiciário brasileiro restabelecendo a naturalização e anulando o ato de extradição será ineficaz no plano internacional. Caso o Brasil solicite a repatriação, duas coisas podem acontecer: (i) o governo da Áustria se recusar a devolver o estelionatário e gerar incidente diplomático; (ii) a opinião pública mundial notar a predileção e o mimo que autoridades brasileiras têm por gatunos de alto coturno. A mais alta corte de justiça do Brasil será vista como o “Abre-te Sésamo” da mais alta e refinada malandragem.

No âmbito interno, decisão judicial favorável ao larápio austríaco ensejará instauração de processo para apurar a responsabilidade das autoridades envolvidas, sejam do governo atual, sejam do governo anterior. Importará no reconhecimento, explícito ou implícito, de usurpação da competência do Poder Judiciário pelas autoridades do Executivo. Na arena de tal processo atuará o vibrátil espírito de condescendência e cumplicidade próprio da esfera política. O precedente de Fernando Collor não serve para contestar esse espírito. O afastamento desse presidente resultou de um sórdido conluio de gente sem escrúpulo que se viu alijada da “República das Alagoas”. Fruto de indecoroso oportunismo, o impeachment não foi motivado por relevante interesse nacional e sim por mesquinhos interesses privados. A corrupção nos governos de Fernando Henrique e Luis Inácio atingiu níveis estratosféricos. No entanto, nada ameaçou a permanência deles na presidência da república. Ambos distribuíram o produto da roubalheira e, desse modo, asseguraram a impunidade. A canalha incrustada no Executivo alienou o patrimônio econômico e estratégico do Brasil formado com o sacrifício de várias gerações de brasileiros; desfalcou o erário com cartões corporativos e fraudulentas licitações; invadiu e loteou a administração pública; jogou sobre os ombros da população carga tributária gigantesca; inibiu o setor produtivo da economia brasileira com elevadas taxas de juros; aumentou a dívida pública para mais de trilhão de reais.

Outro pálido efeito interno da decisão do STF, caso insista no julgamento do mérito, será o de formar jurisprudência. Diante da divergência já desenhada entre os ministros, esse precedente poderá modificar-se quando mudar a composição do tribunal. A matéria está sob a égide do estatuto do estrangeiro: lei 6.815/80. Essa lei foi recepcionada pela Constituição brasileira de 1988. Segundo esse estatuto, compete exclusivamente ao Poder Executivo conceder naturalização mediante portaria do Ministro da Justiça. A naturalização ficará sem efeito se no prazo de 12 meses, contados da data de publicação da portaria no diário oficial, o requerente não procurar o respectivo certificado junto à autoridade competente. A naturalização também poderá ser cancelada a qualquer tempo se verificada falsidade, ideológica ou material, de qualquer dos requisitos exigidos pelo estatuto. Tanto a perda de eficácia da portaria por omissão do interessado, como a declaração de nulidade do ato por vício procedimental, ocorrem no âmbito do Ministério da Justiça, sem interferência do Poder Judiciário (estatuto, art. 111, 112, §§ 2º e 3º, 119, §3º). Vige a regra: quem pode conceder, pode cancelar (poder do administrador público de rever seus próprios atos).

O cancelamento da naturalização ocorre, ainda, no bojo de processo judicial, a fim de proteger interesse nacional (CF 12, §4º, I + lei 818/1949, art. 24/34 + estatuto, art. 128). A conseqüência é a mesma da via administrativa: perda da nacionalidade brasileira sem implicar, necessária e automaticamente, expulsão ou extradição. O motivo do cancelamento na via administrativa é formal: perda da eficácia da portaria ou fraude no processo de obtenção da nacionalidade brasileira. Na via judicial, o motivo é substancial: atividade nociva ao interesse nacional. A administrativa e a judicial são vias independentes e de efeito jurídico pleno. Apesar do cancelamento do ato de naturalização, quer pela via administrativa, quer pela via judicial, o ex-brasileiro poderá permanecer no território nacional e responder por delitos aqui praticados. O retorno ao status quo ante, ou seja, à condição de estrangeiro, não acarreta automática expulsão ou extradição do ex-brasileiro. Esses dois institutos têm regulação própria no estatuto, distinta do regime da naturalização.

A expulsão – à qual não está sujeito o brasileiro nato ou naturalizado – consiste em colocar para fora das fronteiras do país o estrangeiro que atentar contra a segurança nacional, a ordem política ou social, a tranqüilidade ou moralidade pública, a economia popular, ou cuja conduta se mostre nociva aos interesses nacionais (estatuto, art. 65). A expulsão está condicionada a sentença penal condenatória transitada em julgado. Apoiado em tal sentença, o Ministro da Justiça instaura inquérito para expulsão do estrangeiro. O inquérito admite o contraditório e se esgota na esfera administrativa. Cabe ao Presidente da República resolver sobre a expulsão de modo soberano e em caráter definitivo (estatuto, art. 66/68).

A extradição – à qual não está sujeito o brasileiro nato – consiste na entrega, pelo governo brasileiro ao governo de outro país, de pessoa física residente no território brasileiro. A extradição está condicionada ao pedido do país estrangeiro e à existência de tratado ou de promessa de reciprocidade entre o Brasil e o Estado solicitante (estatuto, art. 76). Além disto, o pedido de extradição deve estar: (i) motivado em crime praticado pelo extraditando no território do Estado solicitante; (ii) instruído com cópia autêntica da sentença condenatória ou do decreto de prisão. No Brasil, só estrangeiro e brasileiro naturalizado podem ser extraditados, observadas as reservas constitucionais e legais (CF 5º, LI, LII + estatuto, art. 77). Do processo de extradição participa o STF (CF 102, I, g + estatuto, art. 77, §§2º e 3º e art. 83). Ao tribunal cabe verificar a idoneidade da documentação apresentada pelo Estado solicitante, se há envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, se extinta ou não a punibilidade do extraditando nos termos da lei brasileira, se o crime foi comum e praticado antes da naturalização (o crime político não autoriza a extradição, nem o crime comum praticado após a naturalização: CF 5º, LI).

No caso concreto, sub judice, o larápio foi extraditado, o que supõe audiência prévia do STF. Há, prima facie, óbice ético para o STF inquinar ato do Executivo para o qual colaborou. Todavia, pelo que se viu e ouviu na sessão de julgamento, parece que o STF não participou do processo de extradição. No processo de declaração da nulidade do ato de naturalização com seus exclusivos trâmites no âmbito do Executivo, a interferência do Judiciário era descabida, porém, no processo de extradição essa interferência é imprescindível ex vi legis. Nenhum estrangeiro ou brasileiro naturalizado poderá ser extraditado sem o pronunciamento do STF (CF 102, I, g + estatuto, art. 83). Se o pedido de extradição do larápio austríaco foi subtraído à apreciação do tribunal, a invalidade do respectivo ato se impõe. Nesta hipótese, a afronta à Constituição e ao estatuto dos estrangeiros estará evidenciada.

A gravidade do caso tornar-se-á intolerável se constatada malícia do Executivo para se esquivar da necessária, legal e constitucional interferência do Judiciário no processo de extradição do bandido austríaco. Do que se ouviu na sessão do STF, depreende-se que o cancelamento do ato de naturalização e o pedido de extradição foram objeto de um único processo e de uma só e mesma decisão no Ministério da Justiça. De cambulhada, a extradição e o referido cancelamento foram assim reunidos para compensar, em relação ao Judiciário, a dependência da primeira (extradição) com a independência do segundo (cancelamento). A prolação e execução da sentença administrativa foram facilitadas pela esperta, enganosa e indevida mistura. Há fortes indícios de ação e omissão criminosas.

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