sábado, 3 de abril de 2021

PODER - IX

Na conexão ordem + ordenamento no bojo da Constituição, há princípios e normas contrários que convivem por vontade e decisão do indivíduo, da classe, ou do povo que dispõe do poder constituinte. Todavia, se no caso concreto houver conflito entre máximas, princípios e ideias da ordem constitucional de um lado e, de outro, as normas do ordenamento constitucional, prevalecem os preceitos da primeira na solução da controvérsia. Se, no caso concreto, o conflito ocorrer entre normas ordinárias e normas constitucionais, prevalecerão estas últimas em decorrência da máxima lex superior (supremacia da Constituição). Como leciona Engisch, uma das faces do princípio da unidade da ordem jurídica é a exclusão das contradições, quer as de normas (quando uma conduta aparece como prescrita e não prescrita, proibida e não proibida), quer as de princípios (desarmonias que surgem numa ordem jurídica pelo fato de ideias opostas integrarem a Constituição). 
A colisão não resolvida dentro dos parâmetros das leis vigentes e das regras da hermenêutica, abre ensejo a movimentos rebeldes e de resistência, cada qual buscando assegurar a sua posição. Desse embate de forças contrárias pode resultar uma revolução ou um golpe de estado. No plano dos fatos, o conflito pode acontecer entre normas constitucionais escritas e princípios gerais não escritos. O citado jurista traz à colação o caso submetido ao Tribunal Constitucional versando a compatibilidade do artigo 117, inciso I, da Constituição alemã, com os princípios da segurança jurídica e da separação dos poderes. O referido artigo instituiu a igualdade entre homem e mulher e extinguiu a regra de direito civil em sentido contrário. Inobstante, a regra de direito civil continuou a vigorar por falta de regulamentação daquele novo dispositivo constitucional. No devido processo jurídico, os juízes preencheram a lacuna. A colmatação judicial foi impugnada como inconstitucional por ferir os princípios da segurança jurídica e da separação dos poderes, este último qualificado de viga mestra do sistema constitucional alemão. Ao preencherem a lacuna, os juízes invadiram a competência exclusiva do parlamento.   
No magistério de Loewenstein, há normas constitucionais que são colocadas a salvo de qualquer reforma por meio de uma proibição jurídica e que há valores essenciais que não estão expressos em normas. Ainda que a proibição de reforma desses valores não conste de norma expressa, o interdito será eficaz ante o “espírito” ou o “telos” da Constituição. O Tribunal Constitucional alemão, diz o mencionado jurista, adotou a teoria do direito natural ao reconhecer uma hierarquia ou escala de valores na Lei Fundamental. Desse modo, admitiu limites imanentes e não articulados impostos a toda reforma constitucional. Assim, por exemplo, todo preceito inserido na Constituição mediante emenda contrário a tais valores essenciais, carrega em si o vício da inconstitucionalidade. No Brasil, o legislador constituinte colocou a salvo de qualquer reforma os direitos e garantias individuais, o voto direto secreto universal e periódico, a forma federativa de estado e a separação dos poderes (CR 61, §4º).
A coexistência, na estrutura jurídica constitucional do estado, de ideias, princípios e normas contrários, pode gerar conflitos no plano dos fatos. Exemplo 1. O direito à privacidade coexiste na Constituição com a liberdade de expressão, ambos valiosos para o cidadão e para a nação. Quando, no caso concreto, essas duas normas entram em conflito, se falharem os mecanismos de mediação e conciliação, caberá ao tribunal de justiça, no devido processo jurídico, depois de ponderar sobre as soluções possíveis, resolver qual das duas normas prevalecerá. Inaplicável no caso, as máximas lex superior e lex specialis porque as normas em conflito são permanentes e do mesmo nível hierárquico. Exemplo 2. O direito à vida coexiste, no bojo da Constituição, com o direito de reunião, ambos valiosos para o cidadão e para a nação. Quando, no caso concreto, esses dois direitos colidem entre si, um deles prevalecerá. Se a controvérsia não for solucionada pelos meios consensuais, caberá ao tribunal de justiça resolvê-la nos moldes do exemplo retromencionado.  
Poder, ordem, poder constituinte, ordem constitucional, lato sensu, estão na origem dos fenômenos da natureza e, stricto sensu, no âmago dos fatos do mundo da cultura onde esses conceitos se particularizam e têm o seu marco histórico: [1] poder constituinte, como aptidão de um sujeito singular ou coletivo para elaborar eficazmente a constituição escrita de um estado [2] constituição, como ordem intrínseca e ordenamento extrínseco derivados desse poder e consubstanciados num documento escrito, racional e sistemático [3] os dois conceitos universalizados e incorporados à cultura dos povos a partir do século XVIII. 
A ordem constitucional tridimensional (ontológica, deontológica e axiológica) intangível, suprema, irreformável pelos órgãos estatais, é a fonte jurígena do ordenamento constitucional. Na história de alguns países, o ordenamento constitucional, antes essencialmente político, teve o seu conteúdo ampliado com a inclusão das áreas econômica e social, como no México (1917), na Alemanha (1919) e no Brasil (1934).  Ordem que se quer e que se põe e tal como foi posta assim deve ser – breve, singela e positiva fórmula constitucional.    
Poder e ordem sem referencial de legitimidade serão apenas instrumentos do arbítrio e da tirania, ainda que revestidos de legalidade. O detentor do poder deve ser reconhecido pela maior parcela do povo como capaz e autorizado. A ação constituinte deve enquadrar-se nos cânones estabelecidos por quem seja legítimo titular do poder constituinte. Esse poder soberano não se confunde com o poder de reforma juridicamente limitado. Os problemas constitucionais resolvem-se na medida em que (i) a participação de todos for vista com naturalidade e não como confronto tipo amigo versus inimigo, próprio da mentalidade primitiva (ii) o humanismo e a racionalidade forem permeando o pensar, o sentir, o querer e o agir tanto dos governantes como dos governados.    
Engisch, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian. 1979, p. 253/266. 
Loewenstein, Karl. Teoria de la Constitucion. Barcelona. Ariel. 1979, p. 189/191.
Lima, Antonio Sebastião. Poder Constituinte e Constituição. Rio. Plurarte. 1983. p. 71/85.


Nenhum comentário: