quarta-feira, 3 de junho de 2020

LIBERDADE E ABUSO


Defensores do presidente da república agrupam-se de um lado, opositores agrupam-se de outro e se confrontam em locais públicos e privados e nos meios de comunicação social. Intitulam-se democráticos e se acusam mutuamente de autocráticos. Apoiam-se nas seguintes liberdades declaradas na Constituição da República: manifestação do pensamento, consciência, expressão, comunicação, locomoção e reunião. [CR 5º].
Dos embates entre esses dois lados ressalta a confusão entre o amplo conceito de liberdade e o estrito exercício da liberdade no seio da sociedade e do estado. O exercício da liberdade é disciplinado e limitado: (i) pelo direito, em nome da necessidade de certeza e segurança nas relações políticas, sociais e econômicas (ii) pela ética, em nome da necessidade do bem prevalecer sobre o mal, do justo sobre o injusto, da verdade sobre a falsidade. As liberdades devem ser exercidas dentro das balizas éticas e jurídicas. O abuso no exercício da liberdade acarreta punição (prisão, multa, prestação de serviço, restrição ou perda de direitos). A lei sanciona os excessos culposo e doloso no exercício da liberdade, mesmo no caso de legítima defesa, de reações desproporcionais e imoderadas que rompem limites éticos e jurídicos.
Os movimentos dos ativistas que defendem o presidente da república contrariam os valores supremos da nação brasileira e os princípios e normas fundamentais do estado brasileiro (vida, democracia, liberdade, igualdade, segurança, desenvolvimento, bem-estar). [CR preâmbulo + artigos 1º a 17].
A conduta desses ativistas ofende os mencionados valores, princípios e direitos fundamentais, representa grave ameaça às instituições republicanas democráticas. Lembra a Alemanha das décadas de 1920 e 1930. Esses ativistas, inclusive o presidente da república, são nazifascistas nas ideias e nas ações, o que não se compadece com o estado democrático de direito instituído pelo legislador constituinte brasileiro em 1988.
O presidente e seus apoiadores estão sujeitos à pronta, urgente, severa e necessária reação do ministério público e das forças armadas. Essas duas instituições desempenham essenciais funções executórias como guardiães da segurança interna e externa. O ministério público atua por iniciativa própria em defesa da ordem jurídica e do regime democrático; as forças armadas, em defesa do estado e das instituições democráticas, dependem da requisição feita pela presidência de qualquer dos poderes da república. Nenhuma dessas duas instituições exerce poder moderador. Esse tipo de poder exercido pelo imperador soçobrou junto com a monarquia e não foi restaurado pelas constituições republicanas. Poderes da república brasileira são apenas três: Legislativo, Executivo e Judiciário. A moderação entre eles ocorre mediante o sistema de freios e contrapesos resultante da conexão de princípios e normas no texto constitucional. [CR 2º, 49/52, 84,102,127, 142].
A liberdade é um bem precioso existente no mundo da cultura. No mundo da natureza, regido pelo determinismo, não existe liberdade. No círculo humano, liberdade significa ausência de óbices ao pensamento, à vontade e às ações das pessoas. O humano tem a natural necessidade de agir, realizar sua vontade, expressar seu sentimento, manifestar seu pensamento. A função legisladora da razão disciplina essa necessidade. De tal função motivada pelo interesse no útil, no agradável, no bom, no belo, no santo, no verdadeiro, no justo, brotam princípios e normas que limitam o exercício da liberdade e estruturam a moral e o direito. A experiência e o entendimento são as fontes da moral do direito.     
O escravo valoriza a liberdade, sonha com ela, espera por ela e quando chega a ocasião, luta por ela. O escravo é livre para pensar, sentir e querer, mas não para manifestar seu pensamento, expressar seu sentimento e realizar sua vontade. A conduta do escravo subordina-se aos propósitos do seu dono. O escravo é mercadoria que pode ser negociada; o seu corpo tem preço, a sua alma nada vale. Ao talante do dono, o escravo pode ser submetido a tratamento cruel. Antes da Idade Moderna, os escravos eram de pele branca. Epicteto, filósofo estoico, foi escravo branco em Roma e teve a perna quebrada por seu dono (50 d.C.//135 d.C.). Os povos vencidos nas guerras eram escravizados. O trabalho escravo plantou, cuidou, colheu, transportou, cozinhou, serviu, ensinou, abriu estradas, construiu pirâmides, palácios e templos. O escravo defendeu a pessoa, a família, os bens e a pátria do seu dono em batalhas internas e guerras externas.
A escravidão coexistiu lado a lado com as religiões cristã e judaica. No evolver da civilização, com o paulatino reconhecimento da dignidade da pessoa humana, foram rompidos os grilhões. A liberdade tornou-se um bem geral da humanidade. Vida, liberdade e igualdade foram reconhecidas como direitos natos de todos os humanos [declarações da França de 1789 e das Nações Unidas de 1948].
Nos países democráticos da Idade Contemporânea, a perda da liberdade é castigo imposto pelo estado, no devido processo jurídico, a quem comete crime. No gozo amplo e abusivo da liberdade, o indivíduo pode ultrapassar todos os limites, violar todas as regras éticas e jurídicas, mas dificilmente ficará impune.     


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